ARTIGO | O Colapso de um País
“Eu amo todos os aspectos da criação de filmes e acho que estou comprometido com isso para o resto da minha vida.”
Texto de Diego Quaglia
Clint Eastwood cresceu numa família de classe média, não teve uma educação cinematográfica padrão, nunca foi um bom aluno nos seus tempos de colégio, não é nem nunca foi um intelectual e ao mesmo tempo sempre se mostrou um auto–didata cinematográfico aprendendo por conta própria observando o set de filmagem como ator, fazendo perguntas para a equipe, pesquisando por conta própria e aprendendo diretamente com seus mentores, como Don Siegel (seu principal “pai” no cinema) e Sergio Leone. Ele sempre foi alguém com uma inteligência e intuição acima da média e uma paixão por filmes, pelo cinema, por arte e por trabalhar atrás das câmeras.
O fascínio, carinho e aclamação que ele alcança como cineasta não vem só da sua genialidade e do seu talento nato como diretor, como alguém que precisamente controla um estilo e o faz fluir naturalmente como ninguém mais conseguiria, mas também vem de um lugar “exótico” do “astro cowboy” que ao invés de ser um brutamontes animalesco e simplório é um ser humano culto, talentoso, complexo e denso, fatores que moram juntos com a sua sisudez e a sua natureza mais introspectiva porém boa–praça. Esse e outros motivos fazem que seja fácil entender por que ele é amado com imensa empolgação por uma grande parcela da crítica, de cinéfilos e intelectuais desde os franceses da Cahiers du Cinéma, que sempre observaram imenso valor em figuras que não se resumiam só ás suas superfícies mais obvias como Alfred Hitchcock e Howard Hawks, algumas das influências mais direitas que Clint Eastwood acumula, assim como John Ford, John Huston e outros.
Para ajudar nesse fascínio Eastwood também é uma figura política e ideologicamente cheia de nuances e dicotomias, algo bem ao estilo desses artistas como Nelson Rodrigues, alguém que tem declarações e atitudes que tanto refletem um direitismo clássico quanto simpatias progressistas. Uma pessoa que vem de uma família eleitora do Partido Republicana desde jovem (e ele sempre teve uma relação de muita proximidade e carinho com os pais), já disse ser um liberal, já admitiu ter tendencias conservadoras, é a favor de penas mais duras para criminosos, tem uma visão positiva de privatizações, já disse ser contra com o que ele vê como “exageros do politicamente correto”, tem uma admiração no nível pessoal por símbolos e figuras patrióticas ou militaristas, defendeu John Ford e John Wayne no protesto sobre representação indígena no Oscar de 1973, já apoiou Richard Nixon para depois se arrepender disso publicamente com o escândalo do Watergate, sempre foi simpático a Ronald Reagan desde os tempos dele de presidente do Sindicato de Atores, fez declarações de apoio e algumas defesas a Donald Trump na sua primeira eleição em 2016 mesmo que sempre mostrasse ressalvas a seu comportamento. Em 2020 retirou o seu apoio ao presidente e apoiou um candidato Democrata em oposição a Trump e por discordar dos rumos do país saiu do Partido Republicano onde ele sempre esteve para entrar no Partido Libertário (equivalente nos Estados Unidos de um partido independente de direita, economicamente liberal no nosso entendimento, já que o termo “liberal” lá tem a mesma conotação do termo “progressista”).
Ele é alguém que nunca foi religioso, sempre se declarando ateu ou agnóstico, nunca se encaixou, na sua vida pessoal, em padrões conservadores de relacionamento ou família, já disse “ser individualista demais pra ser direita ou de esquerda”, que é um “social liberal e um conservador econômico antes disso virar moda”, que “não se vê como um conservador, mas não é um ultra esquerdista”, que se vê como um “moderado”, é um dos pouquíssimos republicanos históricos que se pronunciou a favor do controle de armas, a favor do aborto, contra todas as intervenções do governo e do exército dos Estados Unidos em guerras como as do Vietnã e do Iraque, a favor dos direitos LGBT e raciais, contra a pena de morte (mais porque a considera ineficaz, perigosa e não por uma barreira moral), já disse que “o extremismo de direita está destruindo o Partido Republicano”, se identifica ao mesmo tempo tanto com os pensamentos de Milton Friedman quanto de Noam Chomsky, já defendeu que existe um valor no equilíbrio de “uma masculinidade mais clássica e na demonstração e apreciação da sensibilidade masculina”, tem uma visão crítica de instituições e autoridades de poder, nunca foi alguém sectário, sempre se relacionando, mostrando interesse e trabalhando com figuras progressistas, de esquerda, que não estão do seu lado. Seu desprezo e desgosto pelo Partido Democrata, inclusive, tem mais a ver com um ódio pelas suas figuras de elite, pró–sistema e burocratas do que discordância em questão comportamentais. Suas histórias como diretor criticam o seu próprio país, questões de masculinidade tóxica, os fracassos e atos maléficos das instituições, do poder, dos seus representantes, de símbolos estadunidenses e tradicionais: a guerra, o militarismo, a violência. Seus filmes mostram simpatia por figuras marginalizadas e minorias sociais, são cheios de relacionamentos não tradicionais, confrontam ideias fascistas de que “criminosos nascem maus” e os mostram como frutos da sociedade, são pró–imigração, contra a pena de morte, não condenam ou demonizam a eutanásia, questionam a mentalidade conservadora e por aí vai. Ao mesmo tempo que é possível ver traços conservadores na sua obra em maior ou menor medida, variando do filme, também é possível ver características progressistas na exata mesma medida.
A obra e vida de Eastwood vão contra uma imagem falsa e enganosa dele como uma espécie de radical de direita, algo que alguns tentam injustamente e de modo reducionista colocar nele se pegando apenas nas partes mais superficiais da sua carreira, vida e esquecendo de toda a dimensão do resto (e principalmente esquecendo uma diferença vital nos seus filmes entre retratar algo criticamente de modo complexo e reforçar esse algo que você está mostrando). E ainda mesmo se isso fosse verdade e esse fosse o caso dele, o que não é, acho um erro colocar um valor artístico nisso como não fosse possível um artista que é uma péssima pessoa (não é o caso dele), ou de extrema direita, ser um grande cineasta - figuras como Cecil B. DeMille estão aí pra mostrar isso. Da mesma forma que um artista pode ser alguém de esquerda, progressista, uma pessoa maravilhosa e ser um péssimo artista. Assim como existem algumas pessoas de direita – não figuras políticas públicas e nem gente de extrema direita que fique claro – que não são necessariamente monstros, mas pessoas que podem ser boas, normais, humanas, com qualidades, defeitos, que pensam diferente de mim ou estão equivocadas, mas não são ruins. Assim como existem pessoas de esquerda ou progressistas que são ruins, sem caráter, medíocres, preconceituosas e etc. Não ver isso é viver num mundo maniqueísta de fantasia.
O Clint é verdadeiramente alguém que só é complexo demais mesmo, um homem indiscutivelmente de direita que além do talento inalcançável, tem sensibilidade tanto artística quanto humana, é verdadeiramente ambíguo, cabeça aberta, questionador e complicado como a sua própria obra. Alguém que tem qualidades, defeitos, erros e acertos como qualquer outra pessoa, mas que não é um reacionário, fascista. Nesses tempos que vivemos de protagonismo da extrema direita, infelizmente, ele parece uma espécie em extinção até nisso.
Ser uma figura em extinção nos leva até o seu último longa–metragem, Jurado Número 2 (2024), um filme raro de se ver hoje em dia pela completa rejeição do maniqueísmo, a tranquilidade e construção discreta com que vai complexificando intensamente mais e mais uma premissa simples, a pureza e minúcia do classicismo, o olhar atento pra ambiguidade adulta, a inteligência sem ser pedante e a crítica sempre amplificada sem ser telegrafada. É um filme sobre como às vezes decidir o que é o "certo" e o "errado" está distante da complexidade da realidade. E o que fazer diante disso se transforma em uma dúvida impossível de responder já que todos os ângulos da questão podem estar ao mesmo tempo “certos” e “errados”? Se em 12 Angry Men (1957) o Sidney Lumet fez do Henry Fonda uma manifestação de carne e osso da bondade humana, a “voz da razão” e o representante de um ideal de justiça que deve ser seguido, aqui o “Henry Fonda” da vez é interpretado pelo Nicholas Hoult, que representa a visão de mundo ambígua, ainda mais questionadora e contemporânea de Clint Eastwood: que vai num sentido completamente oposto e vê que essa “voz da razão” não pode ser a manifestação de um ideal sempre sujeito ao fracasso e ao engano. Hoult se transforma na manifestação da humanidade como algo falho, imperfeito e ambíguo apesar das suas boas intenções, bons instintos e dilemas compreensíveis. Alguém que tanto pode buscar mais de uma “segunda chance”, como também pode se conformar com o seu egoísmo e ser um verme (que ao mesmo tempo por sua vez também pode ser compreensível por um lado e condenável, covarde e asqueroso por outro). Clint revela a complexidade do seu personagem, mas não o defende, pelo contrário, sua angústia o torna mais palpável, faz o seu dilema ficar mais relacionável, mais difícil de ser solucionado quando nos colocamos no seu lugar e torna ainda mais visível o que ele tem de pior. Faz muito sentido o Clint ser admirador do Lumet, mas não ser fã 12 Angry Men por achar ele ingênuo demais pelo visto, querendo aqui usar o filme como referência para responder e inverter a sua lógica colocando a sua própria perspectiva muito mais melancólica e desconfiada de mundo.
O estudo de personagem de culpa e dúvida de Justin Kemp e ao mesmo tempo também da promotora Faith Killebrew (Toni Collette), alguém tão humana e igualmente ambígua, disposta a quase qualquer coisa pra subir na carreira, mas não todas as coisas já que a percepção do fracasso da justiça ao seu redor e um código ético adormecido nela, que ela redescobre, mudam o seu caminho e fazem que renasça um sentimento abandonado quando possivelmente já é tarde demais e as suas mãos já estão sujas.
Sem idealizações ou demonizações (ela vai de uma anti–heroína para uma heroína surpreendente mas trágica), é uma dinâmica de paralelismos e inversão entre núcleos diferentes, típica das narrativas do Eastwood como, por exemplo, o espelhamento entre o Kevin Costner e o próprio Clint em A Perfect World (1993) mas que aqui é elevada a um ponto meio Heat (1995). A partir do roteiro do Jonathan Abrams e do próprio Eastwood, Juror #2 abre espaço para que Clint faça o seu próprio Rashomon (1950), um dos seus filmes favoritos de um dos seus cineastas favoritos e use uma premissa de filme de tribunal/thriller digno de Supercine para abrir reflexões de uma crônica existencial sobre as falhas, fracassos e reflexões do próprio sistema de justiça – algo que já havia feito em Midnight in the Garden of Good and Evil (1997) que compartilha a mesma localidade com esse filme aqui, True Crime (1999), Changeling (2008), Sully (2016) e Richard Jewell (2019) – que condena inocentes sob o oportunismo político, sob as trevas, preconceitos e tristezas que se escondem atrás dos ideais norte–americanos (desde a “família padrão tradicional perfeita do interior”, o “bom moço”, “a boa esposa”, a comunidade naquele júri e cada um dos símbolos de justiça, paisagens verdes ou bandeiras que o filme faz questão de registrar de modo irônico ou melancólico) ao passo que também desenvolve as camadas psicológicas e emocionais que mexem internamente com o seu protagonista. A reflexão sem respostas fáceis ou prontas resulta num momento em que a verdade seja dita de maneira indireta mas frontal, num confronto – sempre mundano – entre a personagem da Collette e do Hoult. Um show de dramaturgia e de atuações.
E é a encenação do filme que vai reforçando a cada instante as dinâmicas de personagens, as suas caracterizações e os seus estados emocionais, algo que o Clint faz como poucos, se focando numa aparente simplicidade que, sem rodeios e de modo sútil, se revela em escolhas extremamente firmes, imaginativas, ousadas e inteligentes, com um rigor classicista, minimalista e um norte dramático pulsante. A abertura com a estátua da justiça vendada logo se torna um símbolo temático que volta ao final quando ela aparece no centro do quadro em cima da Toni Collette em um plongée, mas também desde o começo quando cortamos imediatamente da abertura pra câmera colada no rosto de Zoey Deutch, vendada pelo marido para ser alvo de uma surpresa. A câmera vai se desaproximando andando para trás lentamente até voltar a se aproximar do rosto dela, intercalando sua visão do quarto de bebê com momentos pontuais e rápidos do olhar dela em subjetiva e em panorâmica. Os planos detalhes que surgem de vez em quando durante o filme, no momento que Collette deixa o seu celular cair e Hoult o pega, em uma medalha policial, dos retratos na casa de Justin e sua espoa, do chaveiro, de fotos, de moeda, do copo de cerveja e etc, todos evidenciam comentários vitais que o filme quer frisar ou que está desenvolvendo.
A tensão do plano detalhe da Toni Collette levantando, vendo parte dela fora de quadro enquanto a foto de casal de Hoult e Deutch está atrás em foco é só um dos tantos vários momentos em que Eastwood traduz, cinematograficamente, com sutileza e precisão, as sensações ao redor dele numa simples decisão de plano, de posicionamento do ator em cena, de detalhes de cena e de foco/desfoco. A suavidade das aproximações calmas de câmera no rosto dos seus atores para ilustrar seus conflitos e tormentos; o modo como contraplanos se tornam extremamente poderosos com a gravidade emocional que o enquadramento e as trocas entre dois atores com a câmera, se aproximando de um do outro, se encarando, consegue obter (os momentos de Toni Collette com Gabriel Basso e Nicholas Hoult). A câmera de Yves Bélanger, navegando, deslizando e dando uma volta inteira em panorâmica num plano continuo, acompanhando a movimentação dos jurados quando eles são apresentados, a blocagem do Nicholas Hoult entre os jurados, e encarando os jurados, pra mostrar as emoções dele expondo internamente na sua postura corporal, ele em primeiro plano ouvindo a sua culpa sendo esfregada na sua cara, Hoult pequeno diante de espaços amplos ou das tomadas gerais do tribunal ou então aquela luz branca brilhante se misturando com o rosto de Hoult sempre norteado por sombras nesse digital limpo mas contrastado, assim como a relação com espaços nas composições e a proximidade que a câmera norteia entre as figuras sempre estabelece totalmente o que estão sentindo aquelas figuras no geral.
Os olhos azuis do seu protagonista, seu rosto delicado, angelical, e a figura de “bom mocinho” absolutamente comum ajuda a compor a internalização de um personagem sempre em explosão e tensão que vai convivendo com tudo isso mantendo uma fachada amigável e calma (mas também condescendente e abobada). Joel Cox – acompanhado do seu filho David S. Cox – acaba mostrando um dos seus melhores trabalhos como montador trazendo nos cortes, escolha de planos, inserções de cenas e montagens paralelas um cruzamento entre a “versão inventada” e a “versão real” que toma força visualmente depois de sair do roteiro. Ele intercala as cenas, intercala ao mesmo tempo os discursos de Toni Colette, Chris Messina, as diferentes versões do momento do crime e a reação de Nicholas Hoult observando tudo isso e percebendo seu papel naquilo. Ao mesmo tempo os dois Cox conseguem acompanhar tanto uma dureza e um peso para o projeto, mas também uma suavidade na sua condução. Diferentes versões do crime são recriadas mudando pequenos detalhes de comportamento que variam dependendo de quem está contando o que viu, evidenciando que nem a “verdade” consegue ser algo definitivo, puro ou livre das corrupções do olhar.
E aí existem grandes sacadas como os silêncios de tormento que tomam conta desses personagens em crise (observando o vazio entre objetos até o corte surgir), as mudanças de cena evidenciando objetos vitais que traduzem metaforicamente a discussão presente no filme, a coloração sóbria e sombria com momentos de azulado onde tudo é plenamente perceptível, contrastado e bem iluminado até em cenas escuras, o som forte do para–brisas do carro misturado com o som forte da chuva indicando o tormento mental de Justin, a sua confusão e as transições de cena ou então os rápidos usos de slow nos momentos de carro com esse mesmo objetivo. O microcosmo de todos os tipos pitorescos da comunidade estadunidense que compõe o júri (observados com ironia por Clint nas suas caricaturas e estereótipos marcados, o que se contrasta totalmente com o realismo da abordagem de Hoult, fazendo dele um corpo estranho ali) logo vai se contaminando com a humanidade e consciência que permeia o filme e com a total falta de idealização do Clint, que vai transformando eles em figuras reais. Dois personagens negros interpretados por Cedric Yarbrough e Adrienne C. Moore são colocados como os principais antagonistas de Justin e do réu, mas isso não é nem uma escolha artística com um teor racial, de estereótipos dos “negros raivosos”. Pelo contrário. O personagem de Cedrick é mostrado como o clássico homem de família da classe trabalhadora, de postura conservadora, que foi transformado por uma tragédia pessoal, que tem uma dor compreensível no peito e desconta isso no caso.
As razões por trás das suas ações são mostradas como equivocadas, mas sua dor é entendível e simpatizada pelo filme, porém nem por isso ele deixa de ser mostrado como equivocado, da mesma maneira que o próprio Justin também é. É um debate de dois errados e não de heróis/vilões. Já a personagem de Adrienne compreensivelmente quer que tudo isso acabe logo para poder voltar pra casa e dar atenção para a sua família: é uma mulher negra trabalhadora que não tem condições de ficar muito tempo afastada e são esses fatores do lugar que ela está, as condições que ela tem, o estresse disso e uma impressão também compreensível do réu como um culpado que a levam esse antagonismo, que o filme também não demoniza. Até porque eles antagonizam um personagem que não é tratado como um herói e sim como um anti–herói que vai se tornando um vilão trágico. O filme nunca está do lado dele contra os personagens que travam embates com ele, mostrando seus atos de salvar aquele que colocou indiretamente na cadeia como um ato desesperado e improvisado de alguém que quer conseguir dormir, algo que talvez nunca mais consiga, como mostra a cena da sirene perto do fim.
A realidade é nua e crua: Justin pode argumentar, tentar dar possibilidades que o réu não cometeu aquilo para salvar a sua consciência e ao mesmo tempo a sua pele, mas no final das contas por mais que o júri esteja interessado nisso inicialmente, eles logo se cansam, tem mais o que fazer, estão exaustos e já foram dominados pelos seus próprios preconceitos. Pessoas de raças diversas, idades diversas, profissões diversas e visões de mundo diversas, mas todas juntas nessa falta de idealização. Ele é covarde e passivo demais para estar no primeiro momento que a decisão é falada. A justiça é tão fracassada que o júri decide tentar e só vai para o caminho que eles queriam inicialmente por cansaço, preguiça e raiva. Ver uma elipse narrativa depois que Justin é vencido e confrontado de vez pelo resto do júri, decidindo condenar o homem que ele fez ser preso injustamente, com a cena passando direito para eles informando o veredito para a juíza e o nascimento da sua filha evidencia perfeitamente esse fracasso da instituição. Não interessa ver didaticamente ele o condenando, o fracasso, egoísmo e covardia da elipse e da sua falta lá já dizem tudo para que, na cena seguinte, vejamos que ele finalmente cedeu, que ele é quem ele é, e que nem teve coragem de estar lá. A banalidade mundana se mostra ainda mais sombria. Poucos souberam retratar de forma tão extrema e tão bem o grande fracasso que são os Estados Unidos.
Ao mesmo tempo o próprio réu interpretado por Gabriel Basso não é uma boa pessoa, é um criminoso e alguém ruim, mas mesmo assim, deve ser condenado injustamente e sofrer por algo que não cometeu? Camadas são adicionadas nas situações ou nos personagens, mas o que existe de pior neles continua ali. São dilemas existências que o filme desenvolve e reconhece. Os momentos de coincidências, acasos e atalhos da vida que são colocados na trama são comuns da existência humana, dessa vida mundana estranha que vivemos. A atenção do filme para a ambientação mundana dos figurinos, e dos cenários tão sóbrios, ajuda a destacar esse sentimento de totalidade cotidiana que permeia na trama. Quando parece que o filme vai recorrer desse ar pitoresco cômico para fazer uma conciliação e abraçar a caricatura, ele rejeita isso totalmente, quebrando essa lógica e o tormento emocional que o filme consegue abordar tão bem (somando sempre suavidade e secura), se tornando ainda mais complexo e doloroso. As bandeiras desbotadas, os símbolos das instituições, religiosos e da pátria se revelam ainda mais fracassados quando são encarados por esses personagens cheios de culpa.
Nicholas Hoult resume na sua própria interpretação a condução de Eastwood: absolutamente contido, mas com um mar de emoções de sentimentos em conflito na sua interpretação que saem de maneira extremamente sensível misturando medo, doçura e tensão seja com o seu corpo ou com o seu rosto. Zoey Deutch e Toni Collette também se revelam brilhantes enchendo de profundidades de interpretação personagens que poderiam ser só estereótipos, mas não são, pela sensibilidade da narrativa em olhar pra seus conflitos, camadas e as suas intérpretes. Todos estão tão completos numa unidade mundana e compõe um painel de um Estados Unidos comum que acaba sendo complexificado por Eastwood (impressionante o trabalho de sotaque tanto de Hoult quanto de Collette). Um ótimo J.K. Simmons num papel divertidíssimo que ele se encaixa como uma luva é mais um dos vários indicativos da habilidade mágica de Clint com a escalação de seus atores. Toque de mestre seu personagem sair de cena assim que o filme é totalmente dominado pelos seus aspectos mais sombrios.
Desde American Sniper (2014) Clint radicaliza o seu conhecido numa ideia de ainda mais sobriedade e concisão. Tenho muitas dúvidas se veremos algum outro filme com esse mesmo nível tão extremo, tão alto e tão puro de linguagem clássica no cinema de hoje em dia. Talvez esse seja um dos filmes do Eastwood que mais levam longe e radicalmente a sua veia “mac–mahonista” (uma vertente da crítica francesa dissidente da Cahiers du Cinema que não veneram nem um cinema estilizado e nem um cinema de realismo intimista mais cru, e sim um cinema classicista discreto, sóbrio e econômico mas extremamente preciso, imaginativo e inteligente) sempre presente. O tipo de filme que imagino que alegraria demais o Pierre Rissient, um dos principais críticos franceses ligados ao “mac–mahonismo” e um dos maiores (se não o maior) defensores do cinema do Eastwood desde sempre. A cena final onde o filme decide abraçar de vez a ambiguidade (o tema central da obra do Clint) é de uma secura, de uma amargura, de um aspecto sombrio, devastador, de uma tradução do sentimento de fracasso que vai vir de qualquer jeito não importando qual escolha seja feita. É de uma assertividade narrativa, de uma discrição dramática e de uma precisão cênica na sua sutileza e economia que é algo de levantar e bater palmas em outro jogo de trocas de olhares e aproximações suaves mas tensas de câmera. São sutilezas e sacadas como essa que fazem ele tão gigante e diferenciado.
Acho que nenhum outro cineasta conseguiu representar tão bem esse conceito que o “menos é mais”. Num mundo em que ás vezes só a megalomania, o escopo, o exibicionismo, o virtuosismo, a auto–importância e a auto–afirmação são valorizadas, ele nadou contra essa maré e soube fazer isso chegando várias e várias vezes ao máximo do domínio, imaginação e inventividade do seu estilo como aqui. Fazendo esse cinema clássico, intenso e ambíguo dominado pelas sombras e pelas trevas da humanidade em embates com a luz da vida.