Entrevista | Ruy Gardnier

Um texto recorrente na concepção da revista foi o publicado por Gardnier na contracampo, intitulado Clint Eastwood: Poeta do Discreto. Texto que tenta, podemos assim dizer, encontrar a teia autoral que une, a harmonia particular que rege os filmes de Eastwood, todos profundamente seus, mas sem qualquer traço definidamente reconhecível.

Decidimos então entrevistar Ruy para essa edição da revista, mas expandimos a conversa para outras questões do cinema contemporâneo - entre elas, os problemas de financiamento de Eastwood e outros cineastas, a experiência cinéfila no Brasil, e um panorama da crítica.


Marco: Queremos começar falando da possível aposentadoria do Clint, e do motivo pra essa aposentadoria. Alegadamente, a dificuldade que ele tem tido de financiar seus projetos dentro do sistema de hoje. Como você enxerga o caso específico do Clint, em relação ao que ocorre no cinema contemporâneo?

Ruy: Específico do Clint, a gente está falando de cinema americano, de cinema industrial americano, um cinema industrial diferente de todos os outros cinemas do mundo. A indústria americana, obviamente, mudou muito dos anos 60 até hoje. Mudou muito dos 60 para os 70, dos 70 para os 80. E desde que o capital financeiro tomou conta do dinheiro de Hollywood, você para de ter essas parcerias entre o dono do estúdio e algumas pessoas que ele confia, que ele gosta. Passou a ser só uma questão de números e de risco. Isso dominou Hollywood completamente. Cineastas que podiam dar muito dinheiro, mas eram muito arriscados, simplesmente foram descartados, como Brian De Palma, Clint, Cronenberg, Paul Verhoeven. Trouxeram muito dinheiro para o estúdio, mas eram figuras arriscadas.

Paralelamente, eu diria, no caso do Clint Eastwood, ele já existiu antes algumas vezes, dentro da Hollywood clássica. Não necessariamente criando uma empresa produtora filiada a uma major, o caso da Malpasso/Warner, mas o Howard Hawks e o Ford, tinham. O Howard Hawks era o seu próprio produtor. E o Ford tinha essa espécie de liberdade que dava a ele uma certa autonomia daquilo que ele ia fazer. E o Clint dá uma sorte em relação a esses outros cineastas que eu mencionei, que é fazer filmes muito mais baratos. É claro, você vai ter um filme muito caro, um Unforgiven, mas ainda assim... O Cronenberg, o Brian De Palma fez filmes muito caros, mesmo, O Missão: Impossível, Missão: Marte. O Paul Verhoeven também.

O Clint Eastwood sempre conseguiu fazer, da Malpaso, uma empresa pequena, que ele conseguia fazer os filmes. Não incomodava ninguém na Warner. Até o momento que surge o estagiário do estagiário e pergunta: escuta, por que esse dinheiro está sendo gasto aqui, quando na verdade a gente poderia gastar aqui? E é isso. O estagiário do estagiário mostrou isso pro chefão que não tinha nada pra apresentar. E aí o chefão falou, olha, bom garoto, vou te transformar em diretor. E mandou... Bom, não é exatamente o que aconteceu, mas é o que factualmente acontece. Você pode fazer Eu Sei o Que Vocês Fizeram no Verão Passado 5, mas você não pode fazer o novo filme do Clint Eastwood, do Cronenberg ou do Brian De Palma.

João: Eu achei curioso essa relação com os outros diretores porque esses diretores acabaram saindo de Hollywood e o Clint ficou... nessa questão do parâmetro, estávamos conversando antes de você entrar, repassando alguns diretores contemporâneos, até toda época de Oscar a gente conversa sobre isso, que tem essa impressão que os caras não conseguem fazer filme. Fazem um filme a cada cinco anos, né? Se tornou um preciosismo, assim, por todos esses problemas.

Marco: O próprio Clint acho que foi um dos caras mais ativos, pegar esses grandes nomes aí de Hollywood dos últimos 20 anos, os Scorsese da vida, o Fincher. Acho que ele tinha uma frequência maior justamente por não fazer esses filmes megalodonte, de 200 milhões de dólares. Mas quanto você acha também que isso pode influenciar, e daí não só sobre o Clint, mas no geral mesmo, de um diretor demorar seis, sete anos pra fazer um novo filme, e não ter esse desenvolvimento filmando. Eu sei que tem uma questão do financiamento, mas também me parece que pra vários diretores eles curtem esse espaço todo entre um filme outro. A impressão que eu tenho é que o Nolan, ele gosta de parir cada roteiro dele em uma gestação longa. Então como é que você enxerga isso no desenvolvimento desses cineastas novos?

Ruy: Tem casos e casos. Ninguém obriga os cineastas a fazerem filmes gigantescos, milionários. É claro que tem cineastas cujo estilo se não tiver dinheiro não vai se desenvolver, como Brian De Palma, por exemplo. Agora todos os outros que precisam muito de dinheiro, em geral, acho mal cineastas. Eu me desinteresso absolutamente pelo cinema deles. Enfim, tinha uma época em que Hollywood era completamente azeitada. E você como diretor podia fazer um filme a cada ano, dois filmes por ano. Se você faz filme B, três. Você vai ver o Anthony Mann. E aí, mesmo nos anos 60, quando começa a ter esses Cleópatra da vida, Decadência de Roma, etc. A Queda do Império Romano… enfim, esses filme demoram mesmo. São megalodônticos. Passam por trocentos processos, CGI, computação gráfica. É lento pra fazer e é lento pra financiar. Naturalmente, a gente pode achar que esse é o modelo de negócios porque esse é o modelo de negócios do filme Blockbuster. Mas esse não é o modelo de negócios em Hollywood ou na América. Você pode fazer isso do jeito que você quiser. O Soderberg é um que faz dois filmes por ano. Tudo é uma questão da economia do seu cinema e como você contém. No fundo é a lógica, né? Você acha que existe uma lógica de produção que é da indústria. E no fundo, isso é mentira. Existe uma lógica que é da indústria. Mas você pode criar sua própria lógica de produção. 

Marco: Acho que hoje o Hong Sang-soo é um nome, que consegue fazer dois três filmes por ano.

Ruy: Não, quem acabou com essa ideia de que existe uma lógica de produção foi a Nouvelle Vague, que eles desenvolveram cada um a seu modo fazer uma lógica de produção que tivesse o estilo do cineasta. O Godard, o Rohmer e o Truffaut, principalmente. O Chabrol entrou na que já existia. Mais ou menos. Ele começou com a dele, foi se adequando com que já existia e aí alternou. Mas o Rohmer, não. O Rohmer é um caso exemplar porque ele montou a produtora dele.

Marco: Mais pro final, cada vez ele usava menos gente nos filmes, era o objetivo dele.

Ruy: Sim, mas assim desde o começo a questão é que você tem uma lógica de produção que seja consistente e que possa você já ir pensando no próximo quando você tá fazendo outro e tal, enfim, você ter um esquema. O Clint Eastwood sabia qual era o tipo de filme que ele queria fazer, e a Malpaso era isso. Isso é raro no cinema americano, mas não é raro no cinema.  É claro que fazer isso bem é raro, em qualquer lugar.  

Marco: E tem algum diretor que você destacaria nesse momento, antes da gente partir para o próximo tópico? Contemporâneo, no caso.

Ruy: Não, não. Você tem o Shyamalan que quando sofre um fracasso, se fode. Tem que pegar filme ruim pra fazer. É, não tem. Os irmãos Safdie não dá pra dizer que pertencem à indústria de Hollywood. O Sean Baker comecei a considerar cineasta só agora, com Anora.

Marco: Eu não gostei de Anora, mas... Mas talvez do que eu vi até agora dele, acho que ele tem um método que ele poderia fazer um filme por ano. Poderia fazer, aliás, fazer filmes fora do tempo de Hollywood. 

João: Acho que puxando já pro próximo tópico, acho que Sundance é um bom exemplo. Além do modelo industrial,  esse modelo de edital, de premiação, festival e tal. E que no fim acaba gerando um problema semelhante ao problema de Hollywood. Demora muito, é muito limitado, enfim. E a gente pensa muito aqui no site, a gente fica discutindo muito como que é pensar cinema. Porque a gente enxerga a crítica do cinema meio subserviente ao sistema de festivais, de editais e tal. Então como que a gente pode pensar cinema nesse momento que tudo parece tão financiado, tudo parece tão tomado pelo neoliberalismo, mesmo nos espaços de festival, que são espaços de pensar.

Marco: É, a impressão que dá é que o pessoal que tem a grana pra poder cobrir festival, críticos que tem a grana pra cobrir festival, vão pra cobrir e dizer: ah, esse filme é legal, esse filme não é, mas é um guia de consumo de filmes que nem chegam na maior parte do tempo. Então parece que não tem mais esse processo de pensar, de atacar os filmes.

Ruy: Bom, eu não sei dizer porque, francamente, eu não acompanho cobertura de festival brasileira. E hoje eu não tenho tempo de acompanhar nenhuma cobertura. Mas, enfim, eu acho que cinema é uma arte que precisa de dinheiro pra fazer e para exibir. O cinema tem todas as contradições do capitalismo porque ele é inerente a ele. Não é que não possa existir cinema sem capitalismo, mas tudo que aconteceu para que o cinema existisse só foi acelerado a esse ponto por causa do capitalismo. Só continua acontecendo por causa do capitalismo. Então ele vai concentrar todas as ambiguidades e todas as dificuldades. Eu estava vendo a biografia da Nan Gold, documentário da Laura Poitras, sobre a família que tinha um pavilhão no Louvre, no Metropólitan, no Guggenheim e tal e ganhava dinheiro com Oxycontin, que é da família do Valium, que vicia e matou milhões de pessoas de overdose. E tá aí, o meu assassino é quem dá dinheiro pro festival acontecer. E ao mesmo tempo, se você ficar denunciando isso todo dia, enfim, você não vai parar de fazer isso. Você não vai ter como fazer outra coisa. Então, é isso. Eu acho que o cinema é feito de todas as contradições e por mais que você possa denunciar o festival de Berlim, porque descredencia ou tira filme de apoio à Palestina e sei lá o quê, não deixa que fale sobre Palestina nos palcos, etc. Eu não critico o sujeito que aceita que o seu filme passou lá. Todo mundo precisa comer, todo mundo precisa ter visibilidade do seu filme. É complicado, eu lamento muito que exista esse tipo de coisa. Mas está no mundo, o cinema precisa de dinheiro. Você pode fazer cinema de quintal e passar para os seus vizinhos. Você está fazendo cinema ainda assim. E provavelmente esse é o único tipo de cinema que não precisa do capitalismo para existir. O resto é mais complicado.

Marco: Acho que podemos passar agora pra escala da cinefilia, antes de irmos direto pro Clint. Aqui em Porto Alegre, pelo menos, até o João tá morando em São Paulo agora, mas aqui em Porto Alegre só temos o Capitólio e a Cinemateca Paulo Amorim. E daí são dois espaços, a experiência é bem solitária de cinéfilo. Você acaba vendo filme em casa. Então, como é que você enxerga essa questão hoje?

Ruy: Isso está no projeto né. O cinema está quase inteiro em shopping center. A indústria de entretenimento foca cada vez menos no fora e cada vez mais no dentro, apostando que o público vai querer se sentir confortável em casa e não... Enfim, querendo gastar mais dinheiro para pegar seu carro ou pegar seu Uber, ir para um lugar com o risco de ser assaltado. E aí você vai vivenciar uma coisa que você não está acostumado e depois volta pra casa.

Enfim, é o que eu gosto, é o que eu cresci. Sempre quis desculpa para sair de casa. Até hoje eu não tenho ar-condicionado em casa, justamente por causa disso eu não quero ficar muito confortável em casa. 

Marco: Pô, no Rio? Porto Alegre não dá mais.

Ruy: Não, no Rio não dá mais há muito tempo. Mas eu continuo aguentando. E aí quando fica insuportável eu faço faxina, porque aí é aceitável você suar enquanto você tá fazendo exercício físico. Mas, bom, voltando, eu acho que existe uma tendência normal a todo mundo se enclausurar cada vez mais. A pandemia serviu de desculpa… não que isso não tivesse se originado legitimamente. Diversos distúrbios, síndrome de pânico, medo de sair de casa, ou pessoas que saem de casa cada vez menos. Isso, na verdade, eu acho que o fim dos cinemas de rua é mais um reflexo social do que um reflexo de modelo de negócios. E ao mesmo tempo, com essa ideia, a indústria começou a trabalhar querendo ter cada vez menos riscos. E quando você flopa uma sala de 600 lugares, é muito pior do que flopar uma sala de 120. A partir da década de 70 os centros, basicamente de todas as metrópoles, se deterioraram, passaram a ser vistos como lugares perigosos. E pronto, e aí começa a surgir a opção do Shopping Center que é esse espaço que não tem morte, né? Tem um espaço feito pra você esquecer que vai morrer. Todo espaço inteiro iluminado é feito pra isso. Por que farmácia é muito mais iluminado do que deve? Claro, aqui nesse lugar eu não vou morrer.  O shopping é o mesmo, pra você esquecer que o tempo passa, você tá lá, é um circo de consumo, e o cinema faz parte disso, na verdade sempre fez.

É claro que eu prefiro... Eu não gosto de ir em sala de cinema que é formatada. Você vai no Cinemark que é igual ao outro que você vai. Mas fora isso, não me incomoda tanto, a não ser que o trabalho seja porco, a projeção seja ruim. Eu acho que faz parte da vida. Só tem isso, é melhor do que ver em casa. O problema que eu vejo cada vez maior é que a pessoa não quer só ver em casa. Ela tem uma TV grande, mas ela quer ver no notebook pequeno dela, na cama dela. Eu acho que o cinema, pra acontecer, alguma coisa tem que acontecer relativamente distante de você e sem você ter controle sobre ela. Em casa já é ruim, porque você pode pausar quando você quiser. Para o banheiro, para atender pizza que chegou. Eu faço isso, tá? Eu não gosto, mas eu faço. Eu tento minimizar, mas eu faço. Quando tá no cinema, não. Quando tá no cinema, foda-se. Você vai ao banheiro e você perdeu o filme. É uma coisa que tá acontecendo independente de você. Mas mesmo entre uma televisão e um notebook no seu quarto, que você tá com o dedo na pausa… cara, isso... se você pode ter a opção de um ou outro e você opta pelo negócio, é porque, de fato, você só quer o comfort food, né? E não é à toa que esse tipo de consumo cada vez mais é o quê? Série, Netflix... Mas isso também passa, eu sei de amigos meus que veem Garrel no notebookzinho, debaixo de uma coberta. Podendo ver na televisão de casa. Eu não vou dizer quem é, e é uma figura importante. Enfim, eu não sou polícia de nada, mas eu acho que tem problema aí.  

Joao: Justamente nesse contexto, a gente tá falando, enfim, um pouco mais do público geral, mas da cinefilia também, tem o contexto do Shopping Center, da paranoia da rua, mas também o contexto do streaming, da pirataria. E do próprio LetterboxD, essa experiência super individualizada, onde você vira o protagonista da experiência. Como que se pensa em curadoria hoje? Eu acompanho no Instagram a curadoria da Cinemateca do MAM, eu acho super criativo, inteligente, interessante. Aqui em São Paulo tem alguns casos também, o Cineusp, que tem uma curadoria muito boa, enfim, muito criativa. Como que se faz uma curadoria hoje com essas novas maneiras? Porque eu lembro de ver o pessoal lá do clube de cinema de Porto Alegre, falando das histórias antigas da época,  quando foi fundado, as curadorias eram… sei lá, ciclo do cinema polonês. O ciclo do cinema polonês hoje, a pessoa já não sai de casa pra ver, né?

Ruy: Eu acabei de fazer um cinema da cortina de ferro que deu super certo. Mas deu super certo com um público até um pouco mais velho do que o da Cinemateca. Foi o CCBB, foi a última morte do CCBB. Agora o Hernandes está fazendo o CCBB.

Cara, acho que é o seguinte… faz parte disso. Antes, se você tem um ciclo de cinema polonês, você sabe que se você não for ver aquela merda naquela semana, vai demorar 20 anos pra você ver. Hoje não. Hoje o pessoal que é do torrent, sabe que existe isso a disposição. Se eu quiser ver amanhã, baixo e pronto. Tem no drive. Agora, isso só muda porque a pessoa esqueceu, ou nunca teve essa experiência, de ver projetado numa tela, numa sessão pública, que é a real experiência. Se você perdeu isso, desculpa, você perdeu praticamente tudo. Mas estamos vivendo isso e não é há pouco tempo. Eu acho que a internet é extraordinária. Eu fui adolescente, sem internet. Só fui usar internet quando tinha 20 anos. Foi em 96, quando começou a ter fora dos esquemas nerds pra caralho e porra, amo a internet, é óbvio, né? Eu sonhava em ouvir discos com 13, 14 anos, 15 anos, que quando apareceu no Napster eu fui louco pra baixar. Mas ao mesmo tempo a internet nos deixa muito mimados.

Somando-se, que hoje todo jovem tem uma série de condições psicológicas, toma remédio, tem isso, tem aquilo pra você sair de casa e tal. Isso torna tudo mais difícil pra fazer curadoria, mas ao mesmo tempo não dá pra fazer curadoria achando que não vai ninguém sair de casa. Eu acho que você tem que saber qual é seu público e articular. Por isso que quando eu... Da primeira vez que eu pude sentar e respirar, eu fiz uma amostra chamada de Janeiro Incontornável, para passar todos os espectros. O Hollywoodiano da década de 30,  o Hollywoodiano da década de 50, Nouvelle Vague, o experimental Stan Brakhage, Raul Ruiz, Bergman... Para saber com quem eu estava conversando quando eu estava passando cada um desses filmes. Isso não deu uma resposta definitiva porque isso muda. A cada ano aparecem públicos novos, aparece um universitário que descobre a Cinemateca e começa a ir pra caramba. Isso muda muito. Mas é óbvio que aquelas fórmulas chatas de antes, oficiais demais, acho que caíram em desuso. As pessoas não se sentem mais empolgadas, talvez não se sentissem nunca, talvez... É porque na época não tinha tanta opção de entretenimento, então a pessoa queria sair de casa e aí só tinha aquilo. Hoje não, hoje tem muita coisa. To falando pra fora do cinema, né? E no Rio tem o Estação Botafogo, tem a Caixa Cultural, tem o CCBB, então estão competindo entre si pelo mesmo público.

Não tem fórmula pra fazer curadoria. O que tem é você saber o que já passou na sua cidade, saber o que nunca passou na sua cidade e saber o que de mais relevante nunca passou na sua cidade. Isso está no cerne da mostra do Howard Hawks que eu fiz. Desde 94 eu sou rato de Cinematerca, nunca tinha visto um Howard Hawks projetado na vida. Então sabia da necessidade. O pessoal de São Paulo, o pessoal de BH, não pode falar isso porque teve mostra deles lá. Aquela mostra que aconteceu no cinema, o Humberto Mauro, e aí o pessoal do Centro Cultural Vergueiro levou pra São Paulo, mas o Rio não teve isso.

E do mesmo jeito, eu estou fazendo agora para o meio do ano a Mostra Paul Verhoeven.  Porque todo mundo viu os filmes dele, mas viu os filmes dele em casa, porque era criança, quando os filmes estavam em cartaz.  E não passa o filme dele em circuito cultural porque todo mundo acha que é filme de Hollywood. É óbvio, tem escatologia, tem pum, tem peido, tem, mas Buñuel também tem, foda-se. Não é isso, aliás, eles são vitalistas de um jeito muito parecido. Enfim, eu acho que é isso. Eu acho que é, por um lado, é tentar e tentar, acima de tudo, tentar de achar uma forma de exibir coisas que interesse ao público, mas ao mesmo tempo mais fundamental, que não é correr atrás do público, o mais fundamental é firmar o pé de que você é uma frente, uma cinemateca precisa ser isso, é uma frente de defesa do cinema. Uma frente de defesa do cinema como história, como linguagem, e que você tem que passar certos filmes, certos diretores e certas diretoras.

Você tem que dar atenção para cinema brasileiro. Você não pode deixar que fique cinco anos sem passar um Glauber Rocha, um Sganzerla, um Bressani, um Coutinho. Da mesma forma, um Orson Welles, um Godard.

Marco: Vamos passar pro Clint agora, que é o tema dessa edição que estamos fazendo, justamente pra investigar o cinema dele. Eu terminei agora pouco a filmografia inteira, vi todos os filmes. Acho que só aquele primeiro curta que ele dirigiu, que é ele apresentando alguma coisa, são doze minutos, eu acabei não pegando ainda. Mas... pra mim, o curioso do Clint é que, de todos os grandes diretores, vamos dizer, sendo bem generalista, ele é um que tem um estilo talvez menos discernível, até acho que você comenta um pouco isso no teu texto, O Poeta do Discreto. Não se percebe a mão pesada dele. O que você enxerga que seriam as características dele?

Ruy: É verdade, ele não tem um estilo visual. Ele tem preferências, por um jeito de filmar à Hollywoodiana um pouco mais antiga, ou seja, com planos mais longos, planos até mais longos do que a média Hollywoodiana da época clássica, eu diria. Mas eu nunca fiz essa contagem. Ele tem uma marca fotográfica, que é o modo como ele trabalha as sombras. Como as sombras estão sempre entrando em cena. É óbvio que em cada filme isso acontece de forma diferente. Os filmes dele costumam ser mais escuros do que a média geral. Mas eu acho que o maior traço estilístico do Clint Eastwood é da narrativa que são as narrativas de filiação, de paternidade. E muitas vezes a paternidade por procuração.

Dá pra achar esse tema em Os Imperdoáveis. Esse é o tema do Mundo Perfeito. Esse é o tema do Million Dollar Baby. O melhor dele, ou um dos melhores dele desse século, o Gran Torino. E paternidade é a lei, né? Então acho que se a gente observar a carreira dele, vai ver como tem uma maioria de filmes em que existe um questionamento da lei do pai. High Plains Drifter, por exemplo, é o Vingador que vem destruir o errado e some. Então ele também assume essa função de pai-lei. Já que o pai não faz o que tem que fazer, eu vou ser o pai e matar o pai.

Então, me parece que tem essa reflexão profunda que permeia a carreira dele, mas é óbvio, tem filmes que não têm nada disso. Mas até, sei lá, Meia Noite no Jardim do Bem e do Mal, pra mim, que é uma obra-prima, apesar de não ter a figura do pai, ou essa figura ser enviesada, toda a questão da verdade e da lei tá lá, né?

Marco: Até bom que tu falou desse filme agora, eu escrevi sobre ele faz pouco, estava assistindo em ordem cronológica, assisti ele e o Poder Absoluto, que foi lançado no mesmo ano. Eu acho que os dois... Acho eles interessantes porque eles mostram um pouco de algumas influências dele. O pessoal geralmente associa ele ao John Ford, por todas as questões mitológicas americanas, mas eu acho que desde o começo da carreira ele tem muitos traços de Hitchcock, de alguns modernistas também. O que tu acha que são as influências mais evidentes nos filmes. Ou que talvez ele tenha trabalhado melhor ou talvez não tenha trabalhado tão bem.

Ruy: Vocês lembram a quem ele dedica Os Imperdoáveis? Ao Sergio Leone e ao Don Siegel. Eu acho que o Leone era um homem do depois. E o Clint disse que por mais que o depois de um não seja o depois do outro, ele se entendeu como homem do depois também.

E eu acho que o Don Siegel foi o cara com quem ele aprendeu o que era ser diretor. Don Siegel não é um cineasta também com estilo absolutamente discernível.  É até questionável se de fato ele é um autor ou não, mas fez filmes ótimos. E fez um cinema típico americano.  hemmingwayano, de certa forma. Mas eu acho que é isso. Eu acho que o Eastwood, ele não é um esteta no sentido de que se inspirou em determinados cineastas para compor seu estilo. Ele nem tem um estilo visual, eu diria, tão marcante assim.  

Marco: Eu assisti o Fuga de Alcatraz recentemente, e ele me lembrou obviamente do filme do Bresson, mas é engraçado que o Eastwood meio que tem que aprender, de uma maneira meio artesanal, como fugir da prisão. Então acho que dá pra usar o filme talvez como uma passada de bastão, uma masterclass. Mas saindo agora das influências, aqui um dos nossos temas principais é a questão da visão dele sobre os Estados Unidos, como mudou ao longo da carreira. Acho que nesses últimos filmes, nesses últimos 20 anos, foi mais latente, que ele questionou instituições, principalmente o Jurado Nº 2.

João: Ele mesmo entrou em crise. Acho que primeiro ali em 2016 com a primeira eleição do Trump e agora parece que ele tá reposicionando essa crise. Acho que mais amplo, que se puder responder junto. O que você tem achado da carreira dele nos últimos anos?

Ruy: Olha, acho que é o caso de um por um. Acho que os últimos filmes dele são... Eu gosto. Agora, além do Alcatraz,  eu recomendaria observar como o Don Siegel filma ele no The Beguiled, que acho que talvez seja mais marcante. Mas enfim, vamos voltar para os últimos.

E os Estados Unidos, eu acho que existe uma dificuldade em entender certos cineastas americanos. Sobretudo os que falam que são de direita, os que votam em partido republicano, porque lá a política é totalmente diferente. E lá o libertarianismo não é essa palhaçada que é no Brasil, que é um bando de riquinho do Partido Novo, que não quer imposto e se acha radical por isso. Libertariano realmente não quer o Estado pra nada porque o libertarianismo surge do open range. Então é totalmente entender o cara querer ter arma quando ele tem um rancho no meio do nada e falar que o Estado não vai entrar na minha propriedade para tirar o meu rifle. Então, os Estados Unidos crescem com todo esse espírito. Até eu falo de serem 50 estados, ou seja, o poder central não pode... O poder federal não pode toda coisa. Eu sou primeiro do Estado e depois do país. Então, eu acho que o Clint Eastwood sempre foi conservador. A gente pode mais aproximar do conservadorismo são os filmes do Dirty Harry, que não são dirigidos por ele, não são pensados por ele. Se pensar ao longo de toda a carreira, Sudden Impact, que ele dirigiu, que tem o Dirty Harry. Mas se pensar em tudo isso, não tem nenhum momento da carreira dele que ele estava defendendo, que ele defende a guerra, que ele defende a injustiça, porque ela vai tornar o país mais forte. Nenhum desses traços de filmes claramente de direita, tipo Ridley Scott com Gladiador, coisas assim. Mel Gibson em O Coração Valente, esses são filmes de direita de verdade. O Clint Eastwood nunca teve isso, ele sempre foi aquele... do preto e do branco, vamos ver, calma aí, tem muito cinza aqui nessa brincadeira. Isso não é condizente com chamar um cineasta de direita, né? Muito que pelo contrário no panorama de qualquer época, não só de hoje. Então, eu não sei em que medida ele mudou tanto ou se só as coisas ficaram mais patentes. Mas acho que ele sempre esteve próximo daquela coisa do John Ford, print the legend.

Então, pra mim ele teve a melhor época dele de longe, na década de 90. Ele fez um filme merda que é o Rookie: Um Profissional do Perigo. Do Bird, que é 88, até o Crime Verdadeiro é só petardo. É só filme que é obra-prima ou quase. E pra mim, definitivamente obra-prima: Imperdoáveis, O Mundo Perfeito, As Pontes de Madison, Meia Noite No Jardim do Bem e do Mal. Pronto. Não discuto com ninguém. 

Depois, você tem eventuais picos, como são Meninos e Lobos, Menina de Ouro, Gran Torino. Mas eu diria que a média de grande ou de bom diminui. Eu gosto do Caso Richard Jewell, gosto do Cry Macho, gosto do Jurado, gosto da Mula. Mas entre o Além da Vida e o 15:17 eu só gosto do Sniper Americano. Mas eu não sei se eu vejo muito mudada a questão do heroísmo, não.  

Marco: Sobre ele ator, o Dave Kehr fala sobre isso, que ele não é grande ator e que isso até ajuda os filmes dele. Acho que, pra mim, o caso mais interessante é o Bronco Billy que eles todos estão encenando cowboys. Mas ele tem outros momentos, O Poder Absoluto tem isso, que ele também interpreta e se disfarça para poder fugir. Ele tem alguns momentos onde fala sobre a própria interpretação dele.

Ruy: O que é um péssimo ator? Pra mim, um péssimo ator é alguém que performa mal e atrapalha o filme. Ele tem pouquíssimas ferramentas, sim, não tem um alcance de atuação grande, no sentido que poderia interpretar uma peça shakespeariana ou um musical. Provavelmente não, mas tem atores cuja grandeza reside no poder de face. No carisma, no saber fazer certas caras específicas.

E além de que, como um processo, ele se filmar envelhecendo é uma das performances mais incríveis e conceituais do cinema americano, similar ao que o Tsai Ming Lian faz com aquele ator dele lá, Lee Kang-cheng.

Marco: Pra fechar então, sobre a contracampo… fechou por que?

Ruy: Acabou por que todo mundo tem que fazer 30 anos e quando você faz 30 anos, todo mundo tem que trabalhar. Acabou porque a gente deu sorte de que eu e Eduardo tínhamos mães que toleravam que a gente ficasse em casa. A gente não era sustentado, a gente trabalhava, mas a gente não precisava pagar aluguel nem ter que botar comida em casa.  E, num dado momento, acontece que, enfim… A Contracampo teve alguns problemas. Ela ficou grande. Grande, sim… nunca ninguém ganhou 10 centavos com a Contracampo. Mas ela ficou grande no sentido de que as pessoas começaram a olhar, a querer fazer parte. Quando ela começou a ficar assim, começou a surgir inimizade e competitividade dentro dos colaboradores. E começou... Quando era chique ser da Contracampo, todo mundo queria ser da Contracampo porque era chique, mas não escrevia, tinha uma série de problemas. Pra criar as edições, a revista contava com 30 colaboradores e não conseguia ter mensal. E aí eu me explodi. E aí eu e Junior e Tatiano decidimos que a gente ia expulsar quase todo mundo pra ficar com um grupo sólido e depois ia voltar a chamar de novo.

Mas hoje tá na hora de surgir outra revista, outras pessoas, e possivelmente dizendo que tava tudo errado.


Ruy Gardnier é coordenador de programação na Cinemateca do MAM, chefe de catalogação no Circo Voador, professor e crítico de cinema do jornal O Globo. Foi fundador e editor das revistas eletrônicas Contracampo e Camarilha dos Quatro. Editou os catálogos de mostras retrospectivas dedicadas às obras de John Ford, Samuel Fuller, Abel Ferrara, Buster Keaton, Rogério Sganzerla e Julio Bressane, entre outros. Foi curador das mostras “Julio Bressane - Cinema Inocente”, “Rogério Sganzerla - Cinema do Caos” e “Cinema Brasileiro Anos 90, 9 Questões”. Trabalhou também como pesquisador no Tempo Glauber e foi professor na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

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