Crítica | Priscilla

BRINCANDO DE CASINHA

SOFIA COPPOLA FAZ FILME SOBRE IDEALIZAÇÕES DO REAL


Sofia Coppola entende uma coisa ou outra de crescer na redoma da fama.

Talvez o caso mais bem sucedido de nepotismo no Cinema dos Estados Unidos nesses últimos 30 anos, a filha de Francis Ford cresceu brincando nos sets de filmagem de seu pai e teve todo tempo e dinheiro para explorar o mundo e decidir que queria fazer a mesma coisa.

No mínimo interessante, mesmo para quem não goste de seus filmes, é o fato de que é um Cinema que se distancia consideravelmente do de Francis. Coppola, o pai, tentava explorar o selvagem e indomável do mundo (seja a selva, o som, a morte); Coppola, a filha, se encanta justamente pelo contrário: pelas cores, formas e sabores que compõem a redoma que procura recriar filme após filme: pode ser uma casa no subúrbio, um palácio, um país estrangeiro.

Tal qual nos filmes do pai, seus personagens também vagam por aí, mas com menos poder e liberdade.

Poder e liberdade, a combinação de palavras repetida três vezes ao longo de Vertigo (1958) e que, de acordo com o comovente texto de Chris Marker, marcam a relação do filme com a cidade onde ocorre. Mas se no clássico de Hitchcock vemos uma mudança constante, uma transformação irrefreável de tudo que existe em cena, nesse e em outros filmes de Sofia vemos uma metamorfose contida em um único corpo e que jamais afeta o espaço ao seu redor. Eles constantemente caem, mas o mundo do filme continua lá (seja ele a adolescência americana, a burguesia inglesa, uma Tóquio sem tradução).

Priscilla, portanto, parece um projeto destinado a Sofia, por mais que um poderia imaginar que fosse Lisa Marie com quem ela mais se identifica - e agora lembro que ela dirigiu Rashida Jones em On The Rocks e Emma Watson em The Bling Ring. Que ela tenha feito dele também o seu Vertigo, torna tudo mais interessante.


MITOS, ÍCONES E IDEIAS

Quando sugeri a possibilidade na redação do Outra Hora recebi alguns xingamentos e ameaças (talvez nem tanto), mas a comparação me parece bem óbvia, tanto de um ponto de vista prático como teórico.

Prático porque, assim que encontra Elvis, Priscilla começa a ser modificada tal qual Judy foi por Scottie. São muitos os planos detalhe na primeira metade que mostram essa transformação: os esmaltes, as cartas, os cílios, sempre de ângulos naturais que enfatizam um aspecto manual e também encantado, um olhar e toque delicado em um mundo hiper estilizado (quase como se Wes Anderson não fosse esquizofrênico). Sofia recria até mesmo a cena na loja de roupas e a caminhada materializadora de Kim Novak, quando Priscilla, já transformada, se apresenta a Elvis e seus parças.

Mas se Vertigo contava também com as luzes em seu jogo de segredos e revelações, Coppola está menos interessada na ontologia do olhar e mais na do mundo no qual imerge - algo que a decupagem austera reverbera. Assim, por praticamente todo o filme as luzes difusas e leves (uma marca visual de sua carreira) parecem deixar todos banhados por sombras, em um limbo onde nunca tomam o papel central - este, só poderia ser, do ser humano mais popular do planeta na metade do século 20.

E aí entramos em campo teórico: o Elvis de Sofia Coppola (canalizando o Elvis de Priscilla Presley, produtora do filme), mesmo sendo talvez o mais próximo de representar o ser humano por trás do artista, é uma figura idealizada, de beleza desconcertante e com uma aura que infere em tudo ao seu redor. Falando baixo pela maior parte da projeção, Jacob Elordi é quase como um buraco negro, que puxa toda a luz e toda a matéria para si, até que o que sobra não seja nada exceto um fantasma, uma ideia esvaziada de esposa que ele sonhava em ter - e assistir a fabricação de Cailee Spaeny é algo devidamente desconfortável, sendo que a atriz joga e segura tudo pra dentro.

O próprio filme é construído em torno desse esvaziamento, a montagem em torno de elipses do que deveriam ser os momentos dramáticos reforça a sensação de redoma em torno de Priscilla. Diferente da grande maioria das autobiografias, não é um filme que procura pequenas catarses em acontecimentos específicos, mas em construir esse cotidiano constante, do qual é impossível se libertar. A sensação é de um filme que nunca “acontece”, de um conto de fadas preso nos desenrolares do final feliz, do ponto de vista de uma entidade invasora (Priscilla, a personagem, mas também o olhar de Sofia e Priscilla, a mulher) que revela as manchas do paraíso.

E quando ela decide deixar Elvis e a esmagadora atmosfera construída em Graceland, o filme acaba com a consciência (de personagem, diretora, Priscilla) de que não importa o que aconteça fora dali, a transformação sofrida por aquela menina seria eterna. Assim como seu amor por Elvis, seu amor pela ideia.

O que, por fim, me leva a frase professada por Gloria Grahame em No Silêncio da Noite (1950), dita sobre o personagem de Humphrey Bogart, o qual Elvis assiste hipnotizado em uma cena do filme:

Eu nasci quando ele me beijou. Eu morri quando ele me deixou. Eu vivi algumas semanas enquanto ele me amou.

Frase que, como bem sabe quem assistiu ao filme de Nicholas Ray, encontra seu verdadeiro impacto quando repetida pelo homem que, já aquela altura, não mais era se não um ícone. Uma ideia. Uma idealização. E estes jamais poderiam viver no mundo real, mesmo que tentassem. Mesmo que quisessem.

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