De Adorno à Vanessa Lopes: a presença da Indústria Cultural na Música do século XXI

Estava eu vendo um dos últimos episódios da nova temporada de Love is Blind, sim, um declarado guilty pleasure reservado aos dias mais pesados, até que me peguei prestando atenção na produção sonora do programa. Se a qualidade duvidosa do reality ainda não tinha sido o suficiente para me desincentivar a seguí-lo, foi a música que veio ao meu resgate. Para cada episódio, contei mais ou menos quinze recortes musicais diferentes, todos no formato de refrões anabolizados, ou seja, como se os editores tivessem extraído apenas a parte “boa” e “efetiva” de cada uma destas canções para servir de ilustração aos marcos emocionais de cada casal do show.

O artificialismo fica ainda mais evidente na letra destas pseudo-canções: para quando o casamento está próximo, temos um alegre electro-pop entoando “I’m glad it’s getting closer”; para quando um casal rompe, uma triste balada choramingando “There is no light anymore”. Fiquei pensando se estes excertos vinham de músicas que existiam de fato ou se eram escolhidos em algum banco de refrões, o que não é estranho ao mundo da publicidade e da internet. Basta lembrarmos das stock-photos que acompanham os vídeos e ensaios do YouTube.

O ponto é que, diferente de qualquer outro momento da história, os tempos atuais oferecem infinitas e criativas maneiras de testar os nervos daqueles que se consideram fortemente identificados ao universo da música. O cardápio é extenso, indo desde às macro premiações vazias como o Grammy, até às micro trends do Tik Tok, em que a música está a serviço de qualquer outra coisa que não ela mesma. Não importa qual é a dimensão da gafe, tudo que faça pouco caso da paixão musical será passível de condenações, críticas e (não raro) do mais puro e destilado ódio da parte dos ouvintes dedicados.  

Talvez o mais célebre destes odientos seja o filósofo alemão Theodor W. Adorno. Representante da Escola de Frankfurt, grupo que se dedicava a pensar criticamente os esquemas sociológicos se valendo não só de teorias políticas, mas também da psicanálise e da estética, Adorno tinha como colegas outros pensadores de relevância tais como Walter Benjamin, Erich Fromm e Max Horkheimer. De todos estes colegas, somente ele era um aficionado musical declarado, não só escrevendo passionais textos musicológicos, mas também sendo ele mesmo instrumentista e compositor amador.

Adorno foi um entusiasta fervoroso do núcleo musical modernista alemão do século XX e defensor de seus projetos mais ousados. Ele escolheu como seu campeão pessoal o dodecafonista Arnold Schoenberg - compositor responsável por desenvolver um sistema de composição totalmente alheio aos esquemas harmônicos tradicionais, dando nascimento para algumas das peças mais angulares e cerebrais já escritas: 

Em contrapartida, Adorno foi antagonista não menos fervoroso do Jazz, pasmem, que na época era um dos gêneros musicais mais comentados e efervescentes. Originado em solo norte americano, o Jazz se espalhou como gripe por grande parte da Europa, contagiando a vida noturna dos aventureiros que sentiram-se convocados pelo poder da importação gringa - e a dançar como nunca se dançou antes.  

A conclusão parece um tanto óbvia: mais um homem de sua época fechado e preconceituoso ao que é estrangeiro aos seus costumes e ao que entende enquanto “boa música”.

Será que ouvintes como Adorno não passam de um bando de chatos espertalhões, ansiosos por detonar a diversão e o passatempo alheio em nome de um conjunto de hierarquias e obrigatoriedades para com a música? 

Em defesa do nosso ranzinza, é preciso pensar não a Europa dos anos 1950-60, com a presença dos gigantes Dizzy Gillespie e Miles Davis, perdendo o fôlego naqueles bares tão vivos no imaginário coletivo, de iluminação natimorta, de mais fumaça do que oxigênio, de mais coquetéis do que pessoas... A Europa jazzista que Adorno vivenciou e duramente criticou foi a dos anos 1930-40, cujo estilo dominante era completamente diferente, tanto do ponto de vista estético como do ponto de vista ético. 

Ainda mais disforme do que o fenômeno das Big Bands brancas dos Estados Unidos, que já havia traído as raízes improvisatórias e de expressão individual do Jazz, Adorno presenciou a fusão do swing de Benny Goodman com a chamada “música ligeira” europeia das valsas vienenses e divertimentos de salão. O estilo remanescente era superficial e comercial, ditado por modismos cambiantes. Mesmo em solo norte-americano, a própria música passava a ser nomeada não por seus atributos intrínsecos, mas ao ritmo dançante a que servia: Charleston, Jive, Lindy Hop, e alguns outros. As semelhanças com a maneira como hoje em dia a capitalização do som se organiza, em torno das trends e das redes sociais de consumo audiovisual vertiginoso, são nada menos que estruturais.E

Então, sem mais delongas, vamos à pedra de toque das broncas estéticas adornianas, resumido por seu conceito de Indústria Cultural. Diz o autor, na obra “Dialética do Esclarecimento”:

“O que caracteriza a indústria cultural não é o emprego de novas técnicas de produção, mas o fato de que todas as técnicas são empregadas com vistas à produção em massa de objetos idênticos, substituíveis, a fim de satisfazer um público que é cada vez mais uniforme.”
— Theodor Adorno

Certamente, ao ter elencado Walt Disney como o homem mais perigoso da América, Adorno já conseguia vislumbrar a presença colossal que a Indústria Cultural projetava em todos os ramos da arte, principalmente em relação aos alvos mais facilmente capitalizáveis do cinema e da música. Como vimos acima, a estrutura, intencionalidade e várias das estratégias de comodificação da arte não mudaram muito nestas décadas, contudo, nem mesmo Adorno poderia ter antecipado por completo aquilo que o avançar tecnológico viria a trazer. Dentre as transformações, cabe destacar o que há de mais presente na experiência cotidiana de qualquer tipo de ouvinte contemporâneo: “o milagre da acessibilidade”.  

Atualmente, fica à plena disposição do ouvinte o tesouro de quase um milênio de história da música. E, mesmo assim, a força da Indústria Cultural na música é tamanha que o público geral não parece se incomodar com uma produção musical medíocre da mesma forma que se incomoda com um filme medíocre (fenômeno sensível ao ano passado de 2023, com seus vários flops de produções cinematográficas declaradamente dinheiristas). Para tentarmos interpretar este fenômeno, o caminho se bifurca em: 1) a forma com que a música se relaciona com a produção de prazer no ouvinte (contudo, esta discussão dará um ensaio a parte); e 2) a forma com que a acessibilidade é organizada pelos algoritmos nos mais variados canais e streamings, em conjunção aos interesses financeiros das gravadoras, grandes ou pequenas. 

Esta acessibilidade, por tudo de bom que traz, é também acompanhada por uma série de contrapesos. Dizer incisivamente que apenas “escutamos o que o algoritmo quer” é errado, na medida em que isso exclui o grau de resistência que o indivíduo tem com a sua própria curadoria. Porém, até para os mais dedicados, se torna difícil escapar ileso diante de uma inteligência em constante aperfeiçoamento para fazer do ouvinte um consumidor. 

Para o algoritmo, não interessa ao “que” especificamente este consumidor consome, apenas interessa que o consumidor não cesse de consumir. 

Muito por isso, a sensação de muita gente é de estarem presas em um looping auditivo, escutando sempre “a mesma coisa”, estando cooptadas pela “produção em massa de objetos idênticos”, diria Adorno. É inevitável que esta planificação da experiência musical leve o ouvinte a cometer outro pecado capital: deixar a música de fundo, a serviço de outra coisa. Se antes a sociedade organizava uma série de rituais para se escutar música, hoje a música é o próprio enquadre ritual que nos encoraja a desempenhar as banalidades e necessidades da dita vida responsável - varrer a casa, estudar para um concurso, aguentar o trânsito, fazer exercícios físicos, ir às compras, relaxar após um longo dia de trabalho, e por aí vai. 

Que tipo de relação você “quer” ter com esta arte? Que relação você efetivamente “tem” com esta arte? O mercado de canções quer atiçar o seu desejo, quer que você relaxe e que se deixe gozar no infinito fluxo das “sugestões”, shuffles e on repeats. O que não vai faltar são as múltiplas técnicas e tentações para moldar o teu desejo. É a música-mercadoria para desviar atenções; é a música-trend para hipnotizar com dancinhas. 

Nestes tempos que se impõem, a audição com propósito e a busca por uma relação mais profunda com o artista e sua obra parece ser, cada vez mais, exceção, e não a regra. Nesta medida, a pergunta que fica é: até onde vai o teu desejo com a tua escuta? 

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