Crítica | The Iron Claw (2023)
A Encenação do Real
Acordando a Espetacular Ilusão
O que é cinema, senão a própria encenação do real? O que é o cinema, senão uma tentativa de emular imageticamente a mesma imprevisibilidade da vida? Buscando em seu texto, além de características expressivas, mas verdadeiros aspectos autênticos de naturalidade, algo que seja credível em um estado absoluto, uma crença na efemeridade que deve acontecer no presente e não apenas conjugada e registrada.
E mais: há que exceder a realidade além de um aspecto documental, pois confeccionar um simulacro de verossimilhança não seria apenas um redutor de suas possibilidades, mas também deselegância ao privar uma obra de ter signos mais interessantes. Não é por pura poesia que muitos pensadores relacionam o cinema ao sonho, já que ambos dialogam na mesma linguagem de despertar através do subconsciente. E, para acordar neste estado inerte, a primeira etapa é abandonarmos o conformismo lógico, “esquecermos” de que tudo que se passa em tela - inclusive, a ilusão de movimento na persistência retiniana - é submetido a um custoso processo de racionalização, uma organização antinatural e uma constante encenação de seus efeitos, intenções e resultados, pois isso bastaria para diminuir qualquer valor desenvolvido ao longo de um filme: Não, seu personagem não morreu na vida real, ele é apenas um ator deitado no set, embalsamado de um líquido gelatinoso com o mesmo aspecto cromático do sangue, e a lágrima que escorre de seus olhos enquanto sussurra os últimos suspiros de existência pré-redigidos pelo roteirista, nada mais é que uma técnica corporal e habilidade profissional.
Mas se não encaramos um filme com uma visão extremista, é porque mais do que convencidos racional e sensorialmente através de sua densidade realista, nós como espectadores selamos um “acordo” de credibilidade, aceitando outras escolhas estéticas não naturais sem que isso afete a ilusão final, da mesma maneira que reconhecemos as pinceladas de um quadro sem interromper a imagem impressa no nosso plano psicológico. E chegamos a um ponto de “esquecimento” deste acordo que já não nos emocionamos apenas com a temática, é necessário ela ser visionada de alguma maneira, regida através de um olhar externo.
Após apresentar esse esboço de pensamento, posso dar continuidade ao texto: The Iron Claw está atado a um paradoxo muito interessante quando é apresentado em tela uma vez que o Wrestling, igualmente como cinema, também partilha de uma relação com as “falsas verdades”. Na luta-livre, se busca simular a intensidade do combate real por meio de uma encenação cinética, combinando ataques burlescos que sempre devem ter uma certa espontaneidade física, ainda que, em certas ocasiões, soe artificial ou impossível. A função do golpe aqui não é apenas a de “enganar” o espectador, e sim estar inserida em um contexto coletivo de performance da equipe, da dupla ou até individual. Dentro deste ato encenado que é o wrestling, concordamos igualmente com a espetacularização do ilusório, admitimos em certo nível uma deturpação da realidade - traduzido em movimentos, golpes e reações exageradas - e nos permitimos assim ser contagiados pela magia da encenação. Mais do que afirmar se há realismo ou não, é uma questão performática. Citando o teórico André Bazin em A Montagem Proibida:
Neste mundo falseado - do cinema e do esporte - a mise-en-scène impõe sua própria perspectiva substituindo os fatos da realidade, no caso das lutas dando movimento e intensidade àquilo que apenas simula movimento e intensidade, e na questão dramática culpabilizando o indivíduo psicologicamente e sugerindo uma danação sobrenatural sobre consequentes tragédias ao invés de simplesmente desenvolver a razão destas tragédias (o ambiente familiar tóxico e os perigos relacionados ao esporte e a fama). Essa transposição de valores é concretizada de maneira tão sublime que, como a citação acima afirma, acreditamos nela sabendo que há artifícios ilusórios, passamos a dado momento do filme temer o aspecto sobrenatural desta maldição como também sermos contagiados com a falsa fisicalidade das lutas como se estivessemos vibrando com o triunfo de Rocky Balboa em Rocky: Um Lutador (1976) - mesmo sabendo que o combate é real no filme e falso em tela. Como Bazin afirma ainda no seu texto “É preciso que o que é imaginário na tela tenha a densidade espacial do real”, logo, essa construção só funciona graças ao modo em que os personagens interagem entre si e com o espaço à sua volta.
The Iron Claw, assim como o Wrestling, possui em sua decupagem uma condição anatomicamente robusta capaz de suportar os impactos físicos
A Anatomia do Corpo Cinematográfico
The Iron Claw, assim como o wrestling, possui uma condição anatomicamente robusta, uma desenvoltura física capaz de suportar as quedas e manobras relacionadas, ainda que ausente de uma violência corporal explícita (tanto no contato direto quanto no âmbito psicológico).
Diferentemente da intensidade das cenas dentro do ringue, que emulam o plano televisivo o recortando a partir de closes com uma câmera a mão que adiciona um aspecto bruto a ação, todas as cenas fora do mundo da luta seguem a mesma unidade de estilo: um blocking rígido e pouco comunicativo, em que os personagens dispostos no ambiente quase sempre sentados, respondem com uma obediência militar frente à autoridade sem querer mostrar fraqueza ao expor alguma discordância. O formato do filme contribui para que a disposição espacial não seja apenas análoga ao interior do filme, mas na própria fotografia. A proporção 1.85:1 é um formato mais quadrangular que o típico horizontal do 2.39:1, e isso torna a imagem mais apertada e asfixiante, quase incapaz de organizar todos os irmãos brucutus na tela.
As imagens dentro dos vestiários, os jantares em família e até uma cerimônia de enterro ilustram uma família tradicionalmente sulista sempre em ferradura, círculo ou linha que edifica um ambiente severo fechado, imobilizando nossos personagens constantemente nesse meio. Na expressão podemos ver que esta imobilidade causa uma ansiedade quase angustiante nos irmãos lutadores, incapazes de externalizar qualquer sentimento na movimentação devido ao medo de demonstrar discordância ou fraqueza. Todos baixam a cabeça e pensam “Sim, Senhor”, pois ninguém quer desafiar o déspota.
Todas as cenas se desenvolvem a partir deste blocking fixo e com isso o diretor vai sutilmente escrevendo pequenas pontuações simbólicas, muitas vezes relacionadas a movimentos de zoom ou ao próprio deslocamento em cena. Durante um almoço, um momento de lazer onde a família conversava sobre o passado de maneira descontraída, a câmera “corrige” o plano e insere o pai no enquadramento apenas quando ele fala e isto não demarca sua imponente presença capaz de obrigar a objetiva a respondê-lo, e sim o pouco valor que possui sua ausência em um momento mais emocional.
Mas se o pai Fritz Von Erich (Holt McCallany) intensifica sua autoridade quando se levanta filmado em um imponente contra-plongée, Pam (Lily James),a namorada de Kevin (Zac Efron), a alivia. Mesmo não sendo uma personagem com tanto destaque, é essencial para a narrativa, já que é a única personagem que permanece na história sem partilhar o sombrio laço sanguíneo da família - portanto, livre para discordar. No primeiro encontro do casal, ela quebra o jogo de plano e contraplano de um diálogo envergonhado, se levantando e se aproximando dele, surpreendendo desconfortavelmente a postura defensiva do diálogo até então. A herança traumática repercute na maneira em que eles se relacionam com pessoas fora do núcleo familiar, muito diferente da dinâmica entre eles próprios que é muito mais revigorante e energética e igualmente livre e movimentada na forma em que é mostrada, aumentando a proximidade física e rompendo esse posicionamento protocolar.
Apesar de ser um poderoso e trágico drama familiar, está sempre negando a objetividade deste drama, escondendo o emocional através de recursos de estilo
O Calcanhar de Aquiles de uma Armadura de Músculos
Retomando a analogia ao wrestling, a resiliência do atleta também deve ser sobre o âmbito psicológico e cênico, afinal ele deve ser capaz de sustentar o jogo de expressões cinéticas e faciais para transmitir veracidade e entretenimento ao público, independente do seu estado físico.
The Iron Claw, apesar de ser um poderoso e trágico drama familiar, está sempre negando a objetividade deste drama. É como se este mundo hiper-masculinizante movido à testosterona e ao ímpeto de superioridade - seja contra outros atletas no ringue ou contra os próprios irmãos - afetasse também a própria imagem que não revela por completo esses dilemas emocionais. Os personagens preferem recorrer ao doping, drogas, bebida ou, em última instância, ao suicídio, do que transmitir qualquer ideia de fraqueza ou derrota, e a câmera aceita essa escolha filmando com bastante naturalidade sem a abordar de maneira apelativa (o que, dentro do mundo das cinebiografias, é um grande feito por si só).
O filme abdica da dramaticidade das recorrentes tragédias para desenvolver uma poderosa sugestão metafísica em uma maldição espiritual
Da Maldição a Redenção Espiritual
O filme por si só já havia se destacado por construir uma representação biográfica interessante e emocionante pela sua imersão imagética, não se limitando ao comodismo de uma caracterização imediata e sabendo explorar em sua forma outros elementos nostálgicos, dramáticos e até divertidos que este universo fornece tão ricamente. Mas do meio para frente o filme toma um rumo corajosamente diferente quando decide abandonar o apelo da dramaticidade para sugerir uma presença espiritual, a maldição citada ainda no início do filme se torna cada vez mais real em aparições fantasmagóricas, acidentes imprevisíveis e a deterioração individual e progressiva de cada irmão.
Outro diretor já havia explorado essa forte relação metafísica do esporte como tentativa de solucionar o vazio existencial: Martin Scorsese em Raging Bull (1980) apresenta ao apogeu e a derrocada do boxeador Jake Lamotta (Robert De Niro) que encontra na autoflagelação dos ringues uma maneira de libertar a cólera febril de seu espírito, mas essa redenção arrancada a fórceps, filmada com ares neorrealistas combinado com solavancos maneiristas, nunca vem e sua índole terrível permanece em uma danação eterna do fracasso até o final de sua vida.
Contudo, Raging Bull é um filme de boxe e não Wrestling, e cada golpe é inteiramente real na sua força e intenção. Nossos personagens, diferentes do execrável Jake LaMotta, não são pessoas desprezíveis e apesar de más escolhas, a maldição que atormenta a família Von Erich não é uma entidade punitiva, pois, caso fosse um Deus tão sádico assim, não teria tirado a inocente vida de Jack Jr que morreu ainda criança.
Enquanto a “crucificação” de LaMotta é simbólica, a maldição da família é presente de maneira mais literal e assumida, se alastrando genuinamente como uma doença maligna, inconsciente e impiedosa, acorrentando no tatame nossos personagens ao destino inevitável e os atingindo de maneira tão brusca e instantânea que não possuem sequer a possibilidade de se render e ouvir o gongo soar. E o espectador, a partir dessa sugestão metafísica (a aparição de David na Sala, o espaço negativo que se amplia como um abismo com cada morte e a cena de reencontro no “Paraíso”) passa a crer nesta atmosfera maldita mais do que apontar logicamente aos reais causadores disto: a cultura conservadora, masculinidade tóxica e uma noção capitalista de enriquecimento desenfreado.
The Iron Claw, mesmo inserido em um gênero que em sua imensa maioria preza por reconstituir um realismo, não se prende à realidade dos acontecimentos em si, tanto que nenhuma cena de morte aparece para o espectador (Se assemelhando a Raging Bull nesse aspecto já que o filme estiliza a realidade das lutas através da montagem e de efeitos plásticos). O motivo disto não é um desejo de censurar o sofrimento e poupar o espectador, e sim porque todo o drama desenvolvido parte da relação imaterial de luto no pós-morte e, ao inserir estes valores externos e universais dentro da narrativa, a sugestão espiritual citada não é uma atmosfera fantasista e sim uma busca por uma resposta redentora, o perdão após o pecado. Mais do que expor essas dúvidas, este visionamento ascético é uma tentativa de solucioná-las, e apenas se concretiza com o restabelecimento de outro núcleo familiar distante do modelo inicial.
A presença da A24 aqui proporcionou liberdade estética dentro de relativo alto orçamento, e é injusto que o filme não tenha estado mais presente em premiações
Admito que estava com expectativas altas para The Iron Claw, mas mesmo ansioso para ir ao cinema, não esperava um filme que me atingisse emocionalmente de maneira tão profunda e ainda provocasse tantas reflexões assim sobre sua forma. Não concordo com a glorificação da A24 como um sinônimo de “Selo de Qualidade” inquestionável, mas é inegável que aqui a presença da produtora foi capaz de propiciar uma liberdade estética em um orçamento relativamente alto e é bastante injusto que o filme não tenha estado mais presente em alguns festivais de cinema, não consigo olhar para atuação de Zac Efron sem imaginar ao menos uma indicação de Melhor Ator no Oscar.
A cena final comprova todo seu talento. Sentado no chão, observando ao longe as crianças brincarem como se não estivesse sendo visto - um comportamento recorrente de todos os personagens ao longo do filme - ele começa a chorar, um choro genuíno e poderoso, poderia ser de saudade, de felicidade, de tristeza ou simplesmente porque não pode chorar a vida inteira. E nesse milésimo de segundo, pensamos sobre tudo que acabamos de ver: uma insana corrida pela vitória disposta a realizar qualquer sacrifício, uma vida obcecada em ganhar e ganhar aqui não é seguido de nenhum predicado ou adjetivo, mas o único e solitário verbo. A vitória no fundo, pode ser tão desgraçada quanto a derrota. O vencedor é tão dilacerado quanto o perdedor é a única diferença é que aquele que triunfa vai experimentar, como os antigos heróis, um pouco da glória eterna e do gosto do céu - entretanto os vencedores aqui não são escolhidos através da superação, e sim roteirizados, impuros, falsos guerreiros que lutavam obrigados pela pressão familiar.
Todavia, abdicar da competição e se contentar com a não tentativa, vivendo uma vida hedonista de prazer individual também não parece uma solução viável, se não bastaria para todos aqueles personagens que se entregaram àquilo que solucionava falsamente a angústia existencial por meios materialistas, psicoestimulantes ou carnais. Talvez o sentido da vida é, em um último momento, assim como o personagem de Efron no final do filme, sentar-se na grama e observar de longe, quieto, em silêncio, sem ser notado. E aí, em uma devastadora ambiguidade, sente-se completo ou não, e talvez essa completude que dá sentido à vida, venha socorrer a nossa alma. Seja neste plano ou em outro.