Crítica | Um Bonde Chamado Desejo

Aos rostos que deram vida à história

17 Estatuetas de Prata Para Aquele que Traiu o Cinema

Nesta última semana, na terça-feira dia 3 de abril, Marlon Brando, nome que dispensa apresentações, completou 100 anos. E, como forma de homenagem ao ator, decidi finalizar meu rascunho sobre um dos meus filmes favoritos e um dos primeiros trabalhos do ator: Um Bonde Chamado Desejo (1951). Mas, antes de falar de Brando, não podemos não falar sobre Elia Kazan, o diretor responsável por moldar o ícone de uma geração.

“Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ter sido um lutador. Eu poderia ter sido alguém, ao invés do vagabundo que sou, vamos encarar isso,”. Essas mesmas palavras de descontentamento que atormentam o personagem “dedo-duro” de Brando em On the Waterfront (1954) poderiam ter sido proferidas pelo próprio Kazan, já que, de certo modo, o filme é um retrato biográfico: ex-membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, Elia Kazan foi responsável por delatar diversos colegas de profissão para o Comitê de Investigações de Atividades Anti-Americana durante o período sombrio do Macarthismo. 

“Kazan trocou a alma por uma piscina”, teria dito enraivecidamente Orson Welles a respeito do homem que saiu do estrelato no mundo do teatro e do cinema para se tornar uma das figuras mais odiadas dentro da indústria. Para piorar ainda mais sua defesa, anos após o ocorrido, afirmaria que não se arrependeu de seus atos. 

Mas, engana-se quem acha que ele saiu impune depois dessa covarde delação e uma aparente falta de remorso e caráter: se em corpo e em vida, obteve sucesso e escapou da perseguição política, sua obra acabaria sendo eternamente perseguida pelo olhar de condenação de seus colaboradores e principalmente, daqueles que assistem aos filmes.  

Durante a cerimônia do Oscar em 1999, a reação da plateia ao ver o “X9” receber a estatueta pelo conjunto de sua obra foi uma mistura de perdão, orgulho e desprezo, sentimentos que ainda permanecem na memória de todo crítico, cinéfilo ou mero conhecedor do acontecimento que se arrisca em tecer algum comentário sobre o diretor atualmente. Kazan tinha talento sobressalente para percorrer o salão da história ouvindo reverências e citações em listas de apreciação conquistadas pela sua sensibilidade fílmica, aquela mesma que ganhou em Cannes, em Veneza e em Berlim. Contudo, se hoje não apreciamos sua obra com um autorismo romântico (pois, ainda que cego, todo autorismo é baseado em paixão), é exclusivamente culpa de suas atitudes, afinal ele tomou essa decisão e a polêmica é apenas uma consequência de sua atitude. Ele escolheu dividir seu legado com a poeira e a ferrugem de seus ídolos dourados, abandonados em galpões antigos que soterraram a “Era de Ouro de Hollywood”

Revisitar os filmes de Kazan é sempre uma experiência provocativa porque atrás de seu grande estilo inspirado nas vanguardas, uma capacidade sublime de contar histórias e conduzir atores, um fantasma cinzento se perpetua, um espectro do “e se…”, um espírito que poderia ter conduzido a vida de um homem a outros rumos e sonhos, quem sabe até com outros grandes colaboradores envolvidos. Mas esse fantasma permaneceu e permanecerá para sempre transparente, intocável e irremediavelmente sozinho.

A maldição das adaptações cinematográficas

Retornando a 1951, quando Kazan ainda não tinha se transformado em um traidor e o nome de Brando era apenas um rumor tumultuador, foi designado ao diretor a difícil tarefa de adaptar cinematograficamente o sucesso emergente da peça escrita por Tennessee Williams. Embora não tenha sido a primeira opção dos produtores, Elia Kazan parecia ser a escolha óbvia: não só era amigo pessoal do autor como já tinha experiência com a história da qual dirigiu o espetáculo teatral com o mesmo elenco inúmeras vezes. 

Mas nada disso era garantia de que conseguisse escapar da maldição destinada a todos os cineastas e roteiristas que anseiam em adaptar outra arte para o cinema: enxergar a transparente e fina linha que separa a fidelidade e a conservação da obra original e o redimensionamento necessário para funcionar no formato fílmico, e além desta reconciliação, deve saber traduzir os valores metafísicos, simbólicos, morais e psicológicos internos do texto nas escolhas estilísticas do filme, para que todas as particularidades daquele universo não sejam apenas um reservatório de inspirações. 

Na perspectiva de André Bazin em seu texto Teatro e Cinema, a qualidade de uma adaptação não deve ser medida apenas sobre o quão cinematográfica ela pode ser na inserção de elementos realistas, mas na própria supressão desse realismo oposto à ilusão teatral. A fidelidade de uma adaptação é medida quando capta o espírito encenador, o prazer de visualizar a representação. E após assegurado esse respeito à estrutura cênica e seus efeitos psicológicos, o diretor pode se permitir realizar tais deformações. Kazan não impõe à força uma visão cinematográfica que sobreponha a origem teatral, como se seu formato original não lhe servisse mais do que um rascunho de acontecimentos. Ele a conserva contendo os demais elementos como a montagem e ângulos de câmera em pontuações mínimas e, através disto, o espírito da história flui.

Mas, como o próprio Bazin diz, “Podemos tirar qualquer realidade da imagem cinematográfica, exceto uma: a do espaço”. A bidimensionalidade contínua do teatro responsável por destacar a figura do ator jamais será reproduzida em sua completude no cinema enquanto espaço, já que o cenário funciona quase que independente do ator. Por isso, a adaptação cinematográfica tem a dura tarefa de adicionar em sua manipulação espacial uma profundidade física e psicológica que acompanhe e estimule os atores e a percepção do público.

O problema que se apresenta ao cineasta é, portanto, o de dar a seu cenário uma opacidade dramática, respeitando contudo seu realismo natural
— Teatro e Cinema, André Bazin

O Contraste entre Naturezas

Nossa história se passa inteiramente nos subúrbios de Nova Orleans, em um bairro antigo de apartamentos decadentes dedicados em sua maioria para a classe operária. Essa tragédia pós-industrial é construída por um sólido jogo de luz e sombra estabelecido pela fotografia que, para revelar a degradação da condição social e dos valores morais, lança a luz como um holofote do teatro redireciona nossa atenção. O efeito imagético disso no espaço é de uma sensação de poluição, uma obsolescência em alto contraste nos móveis e na decoração arcaica dentro de um cenário que parece se despedaçar sobre nossos olhos. 

Essa luz potente é responsável por moldar os trejeitos e a personalidade de cada personagem, pintando por meio de nuances sombrios e luminosos que esclarecem e escondem os segredos e os tormentos de cada indivíduo. Tal como o teatro onde o corpo molda o espaço, o feixe de luz que percorre os ombros largos do bruto Stanley Kowalski pode até ser o mesmo feixe de luz que sobrepõe difusamente a delicada Blanche DuBois, mas o contraste entre as naturezas representadas é o que faz a fonte luminosa delinear a sombra da feição violenta de Marlon Brando enquanto maquia a condição o comportamento inocente de Vivien Leigh. 

Os dois personagens, cada um dotado de uma complexidade ímpar e dono de sua própria razão, fruto da escrita inteligente do autor da peça, são a principal dinâmica climática do filme e, se sua função narrativa é envolver emocionalmente o espectador, sua função simbólica é provocar reflexão sobre o estado da sociedade estadunidense da época: Blanche personifica os antigos valores e um ideal puritano de etiqueta, ela crê tão fervorosamente na sua falsa persona de donzela sulista, que acaba conquistando todos em sua volta com o comportamento polido e requintado. Ela personifica os valores aristocráticos longínquos que, apesar de ultrapassados, são muito mais civilizados que o novo status quo comportamental transfigurado pela impetuosa industrialização tecnológica e cultural centrada na personagem de Stanley. Ele é um produto de uma geração pós-guerra, perturbado pelo choque da realidade social fora do campo de batalha, onde a agressividade sucessiva e o abuso de substâncias são sintomas que acabam por adoecer ainda mais o ideal cavalheiresco, um estudo de personagem que serve como base para compreender as relações do homem moderno.

Ele é como um animal. Ele tem hábitos de um animal. Há até algo subumano nele. Milhares de anos passaram e lá está ele. Stanley Kowalski, sobrevivente da Idade da Pedra, levando para casa a carne crua da matança na selva.

O filme é também marcado pela sensibilidade de Kazan em abordar a complexidade temática de uma relação conjugal e parental, colocando os arquétipos em constante desconstrução a partir do simbolismo em torno da atuação. Logicamente, pelo contexto em que a obra foi escrita e o filme produzido, é evidente notar a submissão feminina dentro do ambiente patriarcal, mas, em contraponto, as mulheres dominam as interações emocionais na história. A primeira cena da briga do casal entre Stanley e Stella expõe a fragilidade sentimental do homem nesse sentido: Brando é diminuído pelo enquadramento ao ser mostrado debaixo para cima, seu grito histérico e desesperado ecoa pelo prédio, ele não argumenta nem se desculpa como um adulto, ele apenas a chama. Do ponto de vista de Brando, Stella surge das sombras, sobreposta pelos adornos metálicos curvos, seu olhar severo julga-o com a mesma intensidade violenta da antiga discussão. Em um reflexo psicanalítico, ela se aproxima e ele se ajoelha para pedir perdão tal como uma criança arrependida, e ela atende seu pedido como uma mãe amorosa, se jogando nos braços de seu homem que, apesar de estar carregando-a fisicamente, é a mulher que o conduz até o apartamento.

Outra das escolhas estilísticas que realça esse simbolismo das personagens é a montagem, que funciona exclusivamente em função de reproduzir uma continuidade teatral, e a consequência disto é uma evidente sensação de espontaneidade e imprevisibilidade durante o ritmo das cenas, permitindo maior naturalismo e realismo na interação. Outra herança lírica perceptível é a dramaticidade da encenação e do gestual, que dentro do visual contrastante da película destaca ainda mais o insólito trabalho em pormenores dos atores. Um detalhe menos chamativo, mas igualmente precioso, é a maneira como, em seletos momentos, o enquadramento não é apenas interrompido para um corte em um close-up, e sim realiza-se um movimento que aproxima a câmera do rosto do ator, invadindo seu espaço pessoal e o encarando intimamente. 

Além desse apreço pelo classicismo teatral, Elia Kazan também revela destreza na maneira que ele aborda os problemas psicológicos da personagem de Blanche, criando visualmente uma noção de paranoia e perturbação, como, por exemplo, as luzes que piscam a todo momento nas lâmpadas, nos trovões e, metaforicamente, no tiro responsável pelo suicídio do antigo namorado de Blanche, afora o uso expressivo da sonoplastia, alinhando ecos dos diálogos antigos que repercutem na consciência da personagem.

Apesar de ter uma estética clássica pontual e completa, o real motivo de destaque e da fama do filme se encontra no grande estudo de personagem e na dinâmica das atuações em cena, que permanecem como exemplo primordial até para a atualidade. O primeiro choque está relacionado à formação: Brando foi criado na caótica corrente moderna do Método, já Vivien Leigh é uma atriz clássica do rigoroso teatro britânico. Era mais que evidente que haveria um conflito de metodologias, de personagens opostos e, principalmente, de personalidades dentro do set.  

Vivien, quando comparada ao seu parceiro de cena, parece uma verdadeira nobre dama inglesa. A corpulência em combustão de Brando é praticamente engolida pela complexidade emocional e fragilidade psicológica de Blanche, que dá a impressão de ter muito mais tempo de tela do que os outros personagens. Dotada de um rosto shakespeariano que dança com a sonoridade das suas falas sem se desequilibrar uma única vez enquanto ilustra a condição frágil de sua personagem, tudo isso em uma intensidade poderosa que parece sempre antever a reação do receptor, se desculpando, corrigindo as próprias frases e encontrando motivos em um ritmo completamente fatigante. 

Os malditos românticos irão dizer que qualquer grande atuação histórica deve ter em sua composição um químico corrosivo, um elemento de autodestruição que deve, simultaneamente, ser liberado e contido em um piscar de olhos, e caso não for controlado o papel pode consumir completamente a pele e o mental de um ator. Por mais sistematizado e racional que seja o nível de entrega, o ator sempre trabalha perigosamente em uma atmosfera inconsciente do emocional, e por isso que não são poucos os casos de atores que enlouqueceram ou tiveram dificuldade de desassociar-se de seus personagens, como diz Lulu Santos, “Não leve o personagem pra cama, pode acabar sendo fatal”.

Vivien Leigh encontrou Blanche em uma fase conturbada de sua vida, enfrentando doenças psiquiátricas, surtos violentos e o alcoolismo, tudo isso enquanto enfrentava a pressão de sua profissão e uma crise matrimonial com outro ator inglês, Laurence Olivier. E da mesma maneira que Blanche cria a versão idealizada de si e sua vida, Vivien Leigh adota Blanche como seu próprio reflexo. 

E é com essa beleza melancólica que ela se torna se a grande protagonista do filme e encarna perfeitamente sua personagem, a luz do seu talento natural chama nossa atenção quando começa a conduzir de maneira pomposa seu discurso se perdendo carinhosamente por caminhos poéticos que infelizmente não nos levam a lugar nenhum, mas nos faz vislumbrar através de seu olhar vivo e iluminado um novo velho mundo de valores eruditos, paixões controladas e cavalheirismo. Contudo, seu brilho é passadiço, e no decorrer da história, uma sombra toma a beleza de seu sorriso, a pomposidade de seus gestos, a ternura de seu olhar. Uma tragédia corporal em um estado de inconsciência viva, olhar e mente vazios que habitam aquele espaço idílico que agora apenas ela enxerga. Uma atuação que nasce e morre em si, contrariando a eternidade.

Beleza Sobressalente, Gênio Detestável, Raiva Reprimida, Libído insaciável

A peça ficará em cartaz por 855 apresentações. Durante 855 noites, Marlon Brando se esforça para estragar tudo. A maneira de dizer um texto, de se movimentar, a encenação. Diariamente, rema contra a maré. Toda noite, Jessica Tandy (Blanche) e Kim Hunter (Stella) saem do Ethel. Barrymore Theatre furiosas. Uma delas se inclina em dado momento da representação? Brando mete um cigarro no nariz. Risadas garantidas. Jessica Tandy vira-se de costas? Ele se coça entre as pernas. Gargalhadas garantidas. Ele é capaz de sair de cena em plena fala, de bocejar enquanto ela lhe dá a réplica. Para ela, é um inferno. Para ele, uma brincadeira. [...] Ele agora encarna por completo o personagem de Stanley Kowalski. Detestável, violento, brilhante.
— Un si beau monstre de François Forestier

Antes de “Um Bonde Chamado Desejo”, uma camiseta de manga curta era considerada roupa interna; Antes de “O Selvagem” (1953), a calça jeans era uma vestimenta desleixada; e antes de Marlon Brando se tornar estrela, o papel do ator era apenas verbalizar frases frente a tela. É impossível negar o legado e a revolução que Marlon Brando liderou, sendo pioneiro e principal difusor na atuação de método nos EUA. Anterior a ele, a concepção de ator masculino em Hollywood era praticamente um culto à personalidade, nomes incrivelmente talentosos como Robert Mitchum, Henry Fonda e Humphrey Bogart eram contratados para interpretar, na maioria das vezes, pequenas variações em um mesmo estilo de personagem dentro de gêneros muito próprios. Não estou querendo diminuir nenhum destes atores, pelo contrário, aprecio imensamente o trabalho deles, o método é apenas uma outra estratégia, uma filosofia que permite o ator se metamorfosear por completo, sair de sua personalidade e experimentar outras vivências de maneira profundamente emocional, e em minha opinião, o efeito disso quando bem concretizado em tela é uma experiência aparte.

Tudo que acontece no palco deve ser convincente para o ator, para os seus associados e para os espectadores. Deve inspirar a crença de que na vida real seriam possíveis emoções análogas às que estão sendo experimentadas pelo ator em cena. Cada momento deve estar saturado de crença na veracidade da emoção sentida e na ação executada pelo ator.
— A Preparação do Ator de Constantin Stanislavski

O improviso, que aos demais atores pode ser apenas um acaso brilhante, para Marlon Brando era o coração de sua técnica. O método concebido pelo russo Constantin Stanislavski busca alinhar a verdade das experiências de vida em cena, um processo que visava estar tão completamente imerso na personagem e na história que todas as reações e as emoções expressas fossem, mesmo que em pequena medida, reais. Essa pequena dose de realidade era aplicada em provocações quase pessoais a forma: ele fala enquanto mastiga, interage com objetos aleatoriamente, dá as costas para a câmera, atrapalha o texto de seus colegas, muda o roteiro completamente e obedecia apenas as regras das quais era convencido na voz passiva do argumento ou no grito estridente de raiva como John Huston ou Francis Coppola souberam esbravejar. Nada o impede, pois em sua mente, estes conceitos são imaginários, não há marcações ou roteiro no cotidiano, não há separação entre cenário e cenografia, entre sua vida e a vida da personagem. Sua naturalidade é tão infantil e imprevisível que chega a beirar uma insuportável perfeição.

Como dita anteriormente, Brando deu início a uma nova onda no cinema, ele é o pai de toda uma geração de grandes atores como Robert De Niro, Al Pacino, Philip Seymour Hoffman, Forest Whitaker, Daniel Day-Lewis, Joaquin Phoenix, Hilary Swank, etc. Entretanto, essa paternidade é apenas refletida nos genes, porque para ser honesto, Brando está muito mais para uma mistura entre filho pródigo e o filho delinquente. Sua rebeldia o fazia enxergar o fardo da profissão com uma dosagem de ódio que conseguimos sentir do outro lado da tela, e sua hiperatividade descontrolada de toques, falas e gestos e o esforço  incessante para incomodar a si e a todos em sua volta, um reflexo da sua natureza, e forma de repúdio ao conforto e a submissão, se opondo à estagnação de situações mecânicas que geravam reações mecânicas. Nunca foi só uma questão de convencer o público mas de provocá-lo, é o caos buscando o caos pois sua arte surge do choque entre imprevistos.

Marlon Brando é, se não o maior, um dos maiores atores estadunidenses da história. Ele é considerado o máximo expoente da técnica pois usa de sua fisicalidade e beleza exterior como uma máscara que esconde as principais fragilidades e inseguranças íntimas, e ao misturar sua vida pessoal com a do personagem, a torna uma característica essencial em seus grandes trabalhos. Tal como seu método, devemos acessar o cerne do personagem para compreendê-lo, do mais épico e insano coronel enigmático em Apocalypse Now (1966), ao passivo xerife defendendo a dignidade em The Chase (1966) ao icônico um gangster enfrentando o envelhecimento e herança mortal deixado para os filhos despreparados em O Poderoso Chefão (1972). Mas esses pontos de acessos que externalizam a índole pessoal são mínimos e estreitos, sendo apenas identificáveis através das sutilezas: detalhes como seu olhar longínquo, o maxilar protuberante nas pausas silenciosas, a maneira que cerra os dentes nas explosões de raiva ou como preenchê relaxadamente o ambiente. As sutilezas permanecem sempre sutilezas jamais se sobrepondo à imagem do ser, tudo costurado por pequenos detalhes e gestos significativos. 

Ele não se esconde atrás de maquiagens, transformações corporais ou falsos jeitos de um fantoche sem identidade, e sim floresce através delas, permanece nu e vivo, valorizando primeiro a mudança interna e psicológica junto ao sentimento exposto, e por último, a aparência. Marlon Brando, mesmo com tantos nomes, figurinos e épocas diferentes, é sempre ele mesmo quando atua. Citando novamente de Stanislavski: “Nunca se perca no palco. Atue sempre em sua própria pessoa, como artista. Nunca se pode fugir de si mesmo. O instante em que você se perde no palco marca o ponto em que deixa de verdadeiramente viver seu papel e o início de uma atuação exagerada, falsa.”.

Poucos souberam interagir com o ambiente de maneira tão descontraída enquanto explora o limite da ação no espaço e, se a veracidade de seus atos é necessária para crermos na ilusão, é a dança sensual de seus gestos o verdadeiro fator indispensável para flutuarmos pela atmosfera mágica. Sua atuação em “Um Bonde Chamado Desejo” é a materialização do apetite sexual. Ele usa a beleza física de maneira imponente e agressiva, nos encantamos com sua face como turistas olham para o rosto do leão durante um safári, sabendo que a qualquer momento pode ocasionar um ataque. Stanley Kowalski é um personagem completamente oposto a qualquer percepção de ideal, mas o carisma de Brando o torna engraçado, carismático e cruelmente sádico. Dono de um temperamento explosivo e olhar de desejo poderoso, seu talento é de tal forma natural e visceral que qualquer resquício disso na tela o faz destoar de todos os atores, pois a verdade que Brando coloca em cada segundo da cena deixa o espectador completamente desnorteado, seja vendo ele socar móveis e quebrar objetos ou chorar arrependido, seja no timbre único de sua voz ou no seu rosto estático, seja enquanto ele respira sem dizer uma palavra ou gritante silêncio que sentimos na falta da sua presença em cena. Brando é um verdadeiro furacão: inquieto, avassalador e destrutivo, e quando se vai, deixa apenas destroços para trás.

Brando projeta a ameaça abnegada de um animal selvagem à caça de alguma coisa que ele não consegue definir. [...] James Baldwin escreveu que pedimos às pessoas no teatro para representarem, mas às pessoas no cinema pedimos para serem. “Ser ou não ser”, a grande questão de Hamlet, é uma questão que Brando nunca precisa de colocar em voz alta, ele incorpora-a a cada instante fascinante
— Marlon Brando: O Seu Lado Selvagem, F.X Feeney

Um Bonde Chamado Desejo é um filme violento. Agressivo, psicológica e visualmente, ele dilacera a mordidas e socos as temáticas de violência matrimonial, doenças mentais e a decadência da sociedade moderna, entregando tudo em carne-viva. E essa exposição tão íntima e verdadeira chocaria muito mais se não fosse ofuscada pela dinâmica genial dos atores, que seduzem tão completamente nossos instintos que ficamos atônitos e sem reação, tendo que rever o filme para compreender os detalhes do subtexto. É um trabalho atemporal e obrigatório para todos que amam teatro e cinema.

O que você está falando é desejo – apenas desejo brutal. O nome daquele bonde barulhento que atravessa o bairro, subindo uma rua estreita e velha e descendo outra.

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