Crítica | Charli XCX - how i'm feeling now

Can't change what I feel
Never seen the future so real
But maybe I'm just fantasizing
Finally think I'm realizing

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Charli XCX, em álbum produzido exclusivamente durante a quarentena, compartilha seus sentimentos em uma jornada musical energética e introspectiva.

Charli XCX é uma cantora, compositora e rapper britânica, que começou a chamar a atenção do cenário pop em meados de 2013, com o lançamento de seu primeiro álbum. Foi mais tarde, contudo, que sua popularidade começou a se traduzir também em elevado aclame crítico, a partir da EP Vroom Vroom, de 2016. Esse lançamento, assim como o das mixtapes Number 1 Angel e Pop 2, apresentava músicas pop com o charme dos hits de topo de paradas, mas com um nível de produção experimental, fora da curva de seus contemporâneos. O álbum Charli, lançado em setembro de 2019, carregou o legado desses três lançamentos anteriores, culminando no seu projeto mais ambicioso a ser lançado até então. 

Não obstante o lançamento recente, Charli, no início de abril, anunciou que lançaria um novo álbum, diretamente da sua casa, e que esse projeto representaria seus sentimentos relativos a essa estranha nova fase de nossas vidas, marcada pelo isolamento social, intitulado “how i’m feeling now”. Além disso, Charli deu aos fãs a oportunidade de participarem um pouco na produção do álbum, ao mostrar trechos de suas músicas em lives do Instagram, deixando que a fanbase opinasse. Fora isso, os fãs puderam enviar vídeos que culminaram no clipe de “forever” e artes que foram utilizadas nas capas dos singles.

Pouco mais de um mês depois, o álbum é lançado, e começo destacando o quanto é incrível que Charli tenha feito esse esforço louvável, independentemente da eventual qualidade das músicas do álbum. Em tempos de inúmeras inseguranças e adiamentos de projetos (musicais ou não), quando ninguém é obrigado a ser produtivo, uma das artistas mais interessantes e conceituadas da atualidade optou por começar um projeto do zero, com a proposta de que esse ajudasse a representar um pouco do cenário em que se vive. É como se Charli estivesse nos presenteando, retribuindo o nosso amor pelo seu último projeto, em um círculo virtuoso.

“how i’m feeling now” começa de forma explosiva com “pink diamond”, uma fusão majestosa de deconstructed club com hip hop industrial. É como se Death Grips e SOPHIE tivessem se reunido para compor uma música e o produto deu mais do que certo. A performance vocal é voraz, catártica e até intimidadora. O beat é claustrofóbico, frenético e tem um ótimo breakdown quando entra nos refrões, e a música funciona muito bem como abertura, remetendo um pouco à função de Next Level Charli no álbum self-titled.

forever”, por sua vez, é a primeira de algumas das faixas que entram na matéria de relacionamentos amorosos. É uma música sobre amar independentemente dos obstáculos que possam aparecer. A performance vocal é tocante e um tanto vulnerável, sendo bem complementada pelo seu instrumental extravagante. É impossível não acreditar no sentimento quando ela canta “You take your time, I’ll take mine, we’ll be fine, Knew I’d be here, be here, be here with you”, sendo que em cada be here parece que ela está chegando mais próxima do ouvinte. A produção, com créditos de A. G. Cook e BJ Burton, é glamurosa e envolvente, de forma que cada segundo da música soa diferente. O refrão, por sua vez, encapsula bem a mensagem da música e gruda na cabeça com facilidade: “I will always love you, I’ll love you forever, Even when we’re not together”. Por fim, o breakdown instrumental na outro é muito bem colocado, dando uma sensação de eternidade ao sentimento da música, similarmente a Track 10, do Pop 2.

claws” segue a temática apaixonada da faixa anterior. Relata a sensação de estar perdidamente apaixonado, com a chama mais acesa do que nunca. Os vocais refletem essa sensação de estar com a cabeça nas nuvens de maneira divertida, como no primeiro verso em “Like your mind, like your smile, Like your eyes, I could die, Aeroplane, you are so fly, Singin' songs by Jeremih”. A produção possui um sintetizador polido, com uma progressão de acordes envolvente, remetendo a 100 gecs, o que não é uma surpresa, dado o crédito de produção de Dylan Brady na faixa. O refrão usa da repetição para o seu próprio triunfo, de forma que os “I like, I like, I like, I like everything about you” são convincentes e intoxicantes.

7 years” trata da jornada de um relacionamento de longa duração, relatando que, apesar das dificuldades, Charli e seu namorado estão mais fortes do que nunca. O instrumental não é o mais impressionante do álbum, mas faz o seu trabalho em sustentar os vocais bem mixados de Charli, que possuem efeitos no estilo clássico de sua discografia e performam um refrão bastante emotivo.

detonate” possui um beat envolvente, com uma linha de sintetizador lustrosa e alegre. Esse instrumental contrapõe uma das letras mais melancólicas do álbum, que tocam questões de falta de autoconfiança e solidão, temas especialmente relevantes nesse período de isolamento. A letra é bastante introspectiva e uma das mais tocantes do álbum, com destaque para o pós-refrão de “I don’t trust myself at all, Why should you trust me? I don’t trust myself alone, Why should you love me?”. “enemy” dá sequência à temática da insegurança, mas dessa vez com Charli abordando a dificuldade de confiar nas pessoas próximas a ela. A letra possui um certo nível de paranoia, remetendo à clássica citação de The Godfather (1972). Diferentemente da “detonate”, aqui o instrumental é mais melodramático, alinhado à letra, que possui até mesmo uma passagem da terapista de Charli. O refrão é contagiante e convincente, com os repetidos “maybe you’re my enemy”.

i finally understand”, na sequência, é, sonoramente, um momento ímpar no álbum, pois se trata de uma fusão de elementos 2-step com drum and bass, características que até aparecem em outras faixas, mas de forma secundária. Trata sobre a busca por resolução e autoconhecimento, sendo uma continuação adequada às faixas anteriores. Embora cumpra uma função temática com sua letra e possua seu diferencial estético, acaba não se destacando muito na tracklist. Não é ruim, mas se beneficiaria de um instrumental mais extravagante ou de um refrão mais elaborado. 

c2.0” é a continuação espiritual de Click, uma das melhores faixas do álbum Charli. Lá, Charli falava de maneira ostentadora do seu clique, sobre como, com seus amigos, conseguiria tudo que quisesse. Agora, frente aos novos obstáculos do mundo, a temática do clique transicionou para um sentimento de saudades, de como Charli anseia por reviver esses momentos com as pessoas que tanto considera importantes: “I miss them every night, I miss them by my side, Catch my tears when I cry, My clique on me for life”. Tudo isso ao som interpolado da música original, só que com intensidade atenuada, representando que o clique não está tão próximo da vida de Charli nesse momento. Se já não bastasse o conceito interessante e tocante da faixa, Charli ainda traz ótimos versos para a música. A faixa acaba sendo um pouco repetitiva com os “click, click, click” e talvez se beneficiaria de algumas mudanças estruturais, mas a música ainda é muito boa e conceitualmente importantíssima para o projeto.

party 4 u” é provavelmente a faixa mais atmosférica e melosa do álbum, e também possivelmente minha preferida, seguindo um pouco a linha sonora que corre mais ou menos pela metade do álbum self-titled. O sintetizador tímido e etéreo que vem ao fundo da música sustenta muito bem uma das performances vocais mais emotivas do projeto. O refrão é memorável e a analogia do “I only threw this party for you, for you, I was hoping you’d come through” como um relato daquilo que fazemos pra chamar a atenção de quem gostamos é inteligente. Se não bastasse isso, a música ainda tem um ótimo verso de rap que consegue soar ao mesmo tempo grandioso e frágil. Ao final, a música desvanece numa bela atmosfera onírica.

anthems” e “visions” são duas bangers que trazem um ótimo fechamento ao álbum. A primeira fala do tédio do isolamento e o anseio interminável por sair à noite, dançar e festejar com amigos em meio a aglomerações. A música soa exatamente como o desejo de Charli, sendo um hino dançante com toques de EDM e trance. “visions”, por sua vez, traz um final justo ao tratar das visões de Charli de um mundo eufórico, isento de problemas. As transições do verso para o refrão, que é bastante energético, são muito bem construídas e culminam numa ótima batida de sintetizador dançante, que aos poucos vai se transformando em uma batida mais industrial, que revive as sensações de incerteza e insegurança da qual o álbum já vinha tratando anteriormente, de forma a nos lembrar que não sabemos se as visões das quais Charli falou realmente se concretizarão.

Pois bem, o álbum não é imaculado, nem complexo ao nível de Charli, mas esperar isso nem seria uma expectativa válida. É um projeto conceitual e temático, não só musicalmente, mas espiritualmente. Trata-se de uma reflexão íntima de sentimentos que surgem em meio a um momento excepcional na vida de todos, e essas reflexões foram agrupadas com muito talento, num álbum que possui letras cativantes e instrumentais que representam o que Charli sabe fazer de melhor: levar o pop ao próximo nível. E tudo isso de dentro de casa! 

Assim como Charli, não sabemos o que o futuro promete, mas o que se pode fazer é dar o seu melhor, um dia de cada vez. Charli, com ajuda dos seus produtores, conseguiu um feito incrível ao criar um álbum em pouco mais de um mês, sem sair de casa, e não foi para mostrar que ela é capaz, mas sim que ela é, assim como nós, alguém que tem muito a expressar. Esse álbum tem tudo para representar o que eventualmente poderá ser chamado de legado musical da quarentena, então, nessa toada, nada mais justo do que nomear Charli XCX como a nossa mais nova rainha da quarentena.

8,8

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