Crítica | O Tigre e o Dragão
O filme de maior bilheteria de todos tempos tem em seu principal momento de catarse uma cena onde praticamente nada é real.
Esta se tornou um dos principais memes dos críticos de “Vingadores: Ultimato”, muitos membros da escola scorseseana (a qual, na maioria do tempo, faço parte) que se divertem ao compartilhar imagens inteiramente verdes e que, com os efeitos especiais, se tornam um embate entre exércitos gigantescos.
Curiosamente, a cena mais louvável deste filme de 2000 (sim, 20 anos completos em 2020), dirigido por Ang Lee e baseado no livro chinês de mesmo nome, também se passa em meio a um cenário inteiramente verde, mas tudo que vemos é real, exceto por imperceptíveis ajustes que apagam os fios que suspendem seus atores enquanto se equilibram em cima de galhos. Poderia até se dizer que a maior virtude do longa é, justamente, fazer com que este e outros momentos - onde personagens flutuam sobre telhados ou mesmo sobre a água - não pareçam um deboche ao gênero a qual o filme pertence, mas a verdade é que apesar de ser um milagre técnico, “O Tigre e o Dragão” sucede por conta dos seres que realizam tais feitos.
Mas antes de falar sobre estes personagens, preciso comentar sobre o quão fascinante é a natureza da arte: intrinsecamente subjetiva, uma mesma obra nunca será percebida da mesma maneira por pessoas diferentes. Entre mim e a cultura representada no longa (China, século 18) há uma distância que apenas poderia ser percorrida caso nascesse de novo o que, é claro, não me impede de apreciar os muitos elementos místicos presentes na narrativa, mas me impede - e boa parte dos espectadores, acredito - de perceber a diferença no sotaque da maioria dos atores, todos de regiões diferentes da Ásia. Talvez para alguém que tenha o mandarim como lingua nativa isso seja uma distração tão grande como ouvir um carioca falando assinhê. E por que tal pensamento faz diferença? Pois, para mim - e para boa parte de nossos leitores, acredito -, as interpretações não sofrem por essas diferenças.
Sendo assim, não me sinto culpado em dizer que o elenco é uniformemente exemplar. Liderados pelos veteranos Chow Yun-Fat e Michelle Yeoh, é possível ver que mesmo interpretando personagens que sofrem por boa parte da projeção todos os atores e atrizes se divertem com o rico mundo no qual estão imersos. Além disso, a linguagem corporal fala mais alto que os diálogos, meramente funcionais. Os dois relacionamentos mostrados em tela comunicam mais pela forma como os casais se olham e se portam próximos ao outro do que pelas palavras que professam. Percebam como a Yu Shu Lien de Yeoh, uma mulher forte e independente, parece se encolher e se tornar vulnerável quando próxima ao Li Mu Bai de Yun-Fat que, por sua vez, responde ao deixar de lado a implacabilidade de ser o guerreiro mais poderoso apresentado no filme.
A relação entre ambos, infelizmente, é pouco explorada, em prol de vermos a origem do ardente, mas excessivamente extenso, relacionamento de Jen Yu e Lo. Além disso os jovens atores jamais demonstram possuir a mesma capacidade de seus veteranos em provocar química sem a necessidade de palavras. Conduzindo a narrativa de forma envolvente e a pontuando com intensas cenas de combate (as quais comentarei mais abaixo), o arco envolvendo os personagens de Zhang Ziyi e Chang Chen, respectivamente, ainda faz um desserviço ao nos desviar completamente da história principal, apenas para termos uma resolução que não parece fazer jus à extensa sequência onde se conhecessem e se apaixonam - por mais que esta seja recheada de planos abertos de tirar o fôlego e narrativamente interessante por si só.
Porém Ang Lee sempre cativou não exatamente por sua habilidade em contar histórias, mas sim por apresentar personagens complexos, repletos de dúvidas, anseios, vontades e paixões que, gostemos deles ou não, nos fazem querer saber o que ocorre a seguir. Sempre mostrando os dois lados da moeda, o cineasta se certifica de fazer com que cada personagem tenha de se equilibrar entre o bem e o mal com a mesma maestria que se equilibram nos já falados galhos verdes. Li Mu Bai tenta não se consumir pela vingança ao passo que luta contra os próprios sentimentos por Yu Shu Lien, enquanto esta tem de enfrentar uma jovem que a considerava uma irmã. A vilã Jade Fox, interpretada por Cheng Pei-pei, não possui misericórdia em suas ações, mas as dores de seu passado justificam sua amargura. Porém é Jen Yu quem tem o arco mais conflitante da narrativa, indo de uma menina prometida em casamento, à uma rebelde apaixonada, à uma mulher arrependida da dor que causou, a jovem passa por uma transformação que jamais deve deixar de ser vista como a turbulenta transição para a maturidade, por mais que suas ações causem acontecimentos trágicos e que deixarão marcas permanentes. Isso a torna uma figura fascinante de se acompanhar e subitamente trágica.
Precursor também em centralizar seu núcleo narrativo em torno de personagens femininas, talvez o que mais atraia o público para “O Tigre e o Dragão” sejam as cenas de luta (a maioria envolvendo estas personagens), e me sinto tranquilo em dizer que foram poucas as vezes que assisti a combates tão impressionantes na história do cinema. De acordo com Ang Lee pouquíssimos dublês foram utilizados, o que requer não apenas uma dedicação hercúlea dos atores em aprender as coreografias e imprimir a fiscalidade de seus personagens, mas um timing certo para os cortes que não tire o realismo dos golpes ao passo que confere ainda mais movimento à eles. Além disso, a forma como as lutas exploram a misé en scène é algo sem igual, flutuando entre planos abertos, fechados e detalhe com naturalidade e jamais suspendendo a ideia de que aqueles combates trazem implicações reais. Sinto por não ter assistido a este filme quando criança, pois o resultado não é nada menos do que mágico.