Crítica | Charli Xcx - BRAT

Você conhece Charlotte Aitchison?

Mais conhecida como Charli XCX, (estilizado como Charli xcx para a era brat), a artista britânica teve um início de carreira comum, sejamos honestos, no início dos anos 2010. Dois álbuns de estúdio com pouca autenticidade, ainda que com verdade artística, alguns feats. estratégicos e uma porção de hits que não enchiam uma mão. Em 2024, olhamos para a intérprete de “Boom Clap”, “Fancy” e “I Love It” com quase estranheza — Charli poderia, facilmente, ter jogado o jogo da indústria para se tornar uma artista que frequenta o topo dos charts, angariando uma massa de fãs e os luxos que o sucesso mainstream pode oferecer.

Ela tinha outros planos.

Em 2016, muda de direção estética, artística, muda de time e toma as rédeas do processo de composição de seu trabalho. Se aproxima de SOPHIE, artista e produtora que teve papel crucial no redescobrimento artístico de Charli, e também de nomes como A.G. Cook e Danny L. Harle. O EP “Vroom Vroom” causa um alvoroço entre aqueles que acompanham o pop alternativo mais de perto, assim como as mixtapes “Number 1 Angel” e “Pop 2”. Singles como “After the Afterparty” e “Boys” coroavam essa era e demonstravam como a inovação estética de Charli podia encontrar a viabilidade comercial no meio do caminho.

O auto-intitulado “Charli”, de 2019, foi reverenciado por público e crítica, sua melhor execução, até então, dessa mistura de pop do futuro com algo que você pode colocar no carro durante uma carona com uma amiga. Seu sucessor, “how i’m feeling now”, é tido por muitos como o disco definitivo da pandemia, gravado durante o primeiro mês de quarentena em 2020, e revelando sua faceta mais arrojada musicalmente, agressiva, disruptiva, e alguns de seus momentos de composição mais íntimos.

Em 2022, ela chega ao seu quinto álbum de estúdio, o último previsto no contrato com a Atlantic Records, o ostentador “CRASH”. Fazendo cosplay de si mesma em sua versão “vendida”, a artista entrega um disco com algumas boas faixas, produções memoráveis, mas que fica aquém da construção narrativa que ela vinha fazendo.

Era um novo ponto de inflexão em sua carreira: renovar o contrato? Mudar de gravadora? Seguir de forma independente?

Charli renova o contrato com a Atlantic. E desde o início do ciclo de lançamento de “BRAT”, seu sexto álbum de estúdio, fica perceptível que algo está diferente. Aparentemente, ela negociou muito bem essa renovação.

Eu adoraria acreditar que o estouro BRAT que aconteceu nos últimos meses foi orgânico. Porém, a experiência no ramo nos tira certas ingenuidades. Em seu contrato anterior, Charli XCX jamais teve orçamento que tocasse os pés da mídia investida em BRAT.

Os singles foram bem recebidos por público e crítica, mas a capa do álbum foi o primeiro momento furor em torno de seu lançamento. Com todo mérito: a natureza pós-irônica do verde fora de moda, da cafonérrima fonte Arial Narrow, da baixa resolução. Tão simples, mas tão ousado em um mercado dominado pela replicação visual do que está em alta agora.

Após os singles, a capa, o furor midiático, catalisado pelo êxtase dos fãs em ver sua artista favorita tendo visibilidade, chega o álbum.

E para entendê-lo em toda sua profundidade, é necessário dar alguns passos para trás, e voltar a pergunta que abre esse texto: quem é Charlotte?

Charli começa sua carreira aos 14 anos, cantando em clubs, boates, raves no Reino Unido, durante toda sua adolescência. Postava algumas faixas no MySpace (que ela mesma julga tenebrosas hoje em dia). Foi notada e assinada pela Asylum (um dos selos da Atlantic) em 2010, em uma época onde ela ainda não sabia qual era seu estilo. Não sabia do que gostava, nem do que não gostava, nem o que queria fazer com sua carreira. Mas fica claro, para quem acompanha seu trabalho, seu apreço e elo afetivo para com a noite.

A noite comporta o drama e a estagnação, a alegria e a tristeza,
e dá espaço para todo e qualquer tipo de catarse.

Dar seus primeiros passos na música durante a adolescência, época das catarses máximas, em plena cena noturna, porém, muitas vezes acompanhada dos pais, devido à ilegalidade de sua presença nesse locais sozinha… É uma soma de fatores um tanto quanto específica. O que nos traz de volta ao álbum.

brat” noun [ C ] /bræt/
a child, especially one who behaves badly”.
— Cambridge Dictionary

Em bom português, “fedelho”; “pirralha”.

BRAT marca um novo início na carreira de Charli. Quando a “pirralha” de 18 anos assinou um contrato de 5 álbuns em 2010, ela era uma aposta, um tiro no escuro; sem carreira, sem projeção, apenas uma porção de fãs e a gana de viver da música. 12 anos depois, ela se vê como uma das maiores figuras do pop contemporâneo. Mesmo que distante do alcance e dos números de alguns de seus contemporâneos, Charli conseguiu, em lançamentos quase independentes (“Vroom Vroom” e suas mixtapes), reunir parceiros e dar vazão a um tipo de pop que pouca gente tinha feito até então. Ou seja, quando a adulta de 30 anos renegocia e renova seu contrato, fica perceptível que, além de barganhar mais alcance mantendo sua liberdade criativa, ela busca homenagear, de alguma forma, aquela pirralha.

BRAT é a revisão da era y2k mais proprietária de Charli até agora. Um disco clubber do início ao fim, com poucas pausas que acrescentam profundidade ao conceito geral da obra. E também é, em muitos momentos, um diário.

Em seu álbum que menos parece se preocupar com ser “relacionável”, Charli se torna mais relacionável do que nunca. Todo adulto tem momentos de confiança e momentos de insegurança, momentos de maturidade e de infantilidade. BRAT é sobre reconhecer a pirralha que temos dentro de nós, e aceitar que ela não vai embora. Ela será, certas vezes, força; outras vezes, fraqueza. A composição lírica do álbum teve como conceito a linguagem de mensagens de texto, aquela que estamos tão habituados hoje, com a qual nos habituamos em tempo recorde no fim dos anos 2000. Isso torna a rima pobre uma inexistência aqui, e serve como munição para uma porção de melodias que são inusitadas, no mínimo, unindo métricas nada ortodoxas com a habilidade melódica ímpar de Charli e seus parceiros.

Após trazer figuras do pop mais mainstream em “CRASH”, Charli volta a colaborar, em BRAT, com os amigos que a ajudaram a encontrar e a aperfeiçoar sua sonoridade única. A.G. Cook, Cirkut, Finn Keane. Além do noivo, George Daniel, que também tem créditos em diversas músicas. Em seus momentos mais pontiagudos, BRAT faz jus ao universo de “how i’m feeling now”; em seus momentos mais íntimos, flerta com a sensibilidade dos deep-cuts de “Charli”.

Não há nenhuma faixa ruim em BRAT. Na verdade, não há nenhuma faixa média: aquelas que tem menos impacto na produção musical entregam maior profundidade lírica e harmônica, aquelas com 2 ou 3 versos compondo toda a letra entregam algumas das melhores execuções do hyper-pop de Charli.

Contudo, o que carrega esse álbum para o topo é a forma como todas as ideias aqui presentes, que parecem soltas, talvez até aleatórias à primeira vista, se organizam para formar o trabalho mais conceitual e denso de Charli xcx até hoje.

Em 15 faixas, a Charli xcx de BRAT vai da clubber adolescente à artista bem sucedida, chegando ao topo de sua carreira, para retornar àquela clubber, depois de passar por uma “jornada pessoal” de descobrimento e auto-aceitação.

Chega a ser cômico o quão fílmica, “jornada do herói”, Joseph Campbell, pode ser a leitura desse álbum.

Por baixo de sua camada mais superficial, BRAT é desnecessariamente profundo. Todos os álbuns de Charli são obras bem pensadas, com coesão de ideias e visões estéticas, mas BRAT pode ser lido como seu primeiro álbum conceitual, com uma narrativa bem estruturada que percorre a tracklist com um ponto de inflexão no meio do caminho. Comecei a perceber essa possibilidade após algumas audições, e a leitura das letras do início ao fim me deu mais convicção dessa abordagem.

Pela primeira metade do álbum, Charli caminha em direção ao sucesso; na segunda metade, caminha em direção à realização pessoal, após entender, em “Rewind”, que a felicidade pode estar, justamente, naquela garota em início de carreira que via tudo de forma mais simples, sensorial, emocional.

Enquanto “Club classics” afirma sua grandiosidade na música, dona dos novos clássicos do club, “I think about it all the time” diminui o tamanho de sua carreira diante do existencialismo da vida; enquanto “Sympathy is a knife” exibe as inseguranças e a intensidade raivosa da garota que ela nunca será, “Mean girls” brinda às garotas más, superando diferenças e até reconhecendo semelhanças; enquanto “I might say something stupid” começa a refletir sobre suas decisões e sua posição na indústria e na vida, “B2b” tem convicção daquilo que não quer mais em sua realidade; enquanto “Talk talk” é sobre o desejo de expor um relacionamento, “Apple” é sobre a coragem de expor seus defeitos de fábrica para esse parceiro; enquanto “Von dutch” é a volta olímpica da realização profissional, “Girl, so confusing”, aprendendo com os erros exibidos em “So I”, é sobre lavar a roupa suja, e não deixar para amanhã as reparações e trocas emocionais que se pode ter hoje — tema presente também em “Everything is romantic”, o ponto de elucidação emocional do álbum, onde um novo amor mexe com visão de Charli sobre outras de suas relações, e sobre si própria.

I think the apple’s rotten right to the core
From all the things passed down
From all the apples coming before
I split the apple down symmetrical lines
And what I find is kinda scary
Makes me just wanna drive
— "Apple", Charli xcx

Em meio a tudo isso, Charli ainda encontra espaço para citar suas influências, reverenciar seus parceiros, escrever uma carta de despedida profundamente tocante para SOPHIE em “So I”. BRAT não tem nenhum feat, algo que foge à regra para Charli, e mesmo assim, consegue não ser auto-indulgente: das citações nominais já comentadas, aos detalhes musicais, como a produção vocal ao estilo Kero Kero Bonito com interpretação ao melhor estilo Haim em “I think about it all the time”.

No fim das contas, o disco convida o ouvinte a refletir sobre seu próprio entendimento do que é amadurecer. Por que não podemos enxergar nossos tombos, irresponsabilidades e traumas com a paz de saber que são precisamente eles que nos farão mais inteligentes, maduros, realizados? Por que amadurecer precisa ser sofrido, traumático, melancólico? Por que não pode ser uma festa?

É impossível não criar expectativas para os próximos trabalhos de Charli xcx, uma das artistas mais consistentes de nossa época e, talvez, a artista mais importante do pop de sua geração. Independente do que vier a seguir, BRAT é uma coroação. Charli, a adulta realizada, em parceria com Charlotte, a pirralha cheia de sonhos, entrega sua obra mais honesta e autêntica. Ao mesmo tempo, entrega a melhor iteração sonora do seu hyper-pop, aperfeiçoado por anos e, aqui, à serviço das canções: pela primeira vez, em sinergia perfeita.



10

Anterior
Anterior

Crítica | Billie Eilish - HIT ME HARD AND SOFT

Próximo
Próximo

Crítica | Millenium Mambo