Crítica | Millenium Mambo
adeus à imagem
Jovem clássico de Hou Hsiao-hsien é retrato amórfico de sensações e filme chave da virada do milênio
O quanto o estado de quem assiste influencia o que se assiste?
Meio acordado meio dormindo, em uma manhã úmida de Outono, assistir Millennium Mambo se provou uma experiência que beira o alucinógeno. Aquele sonho entre-acordado, que acordamos sem lembrar exceto aquela sensação duradoura advinda da efemeridade. Um gosto de cereja, um cheiro de perfume, o som de uma voz. Algo que passou, e que dificilmente volta.
Não que o filme de Hou Hsiao-hsien seja um inspirador de nostalgia.
Vi apenas outro de seus filmes anteriormente, o seminal O Tempo de Viver e o Tempo de Morrer (1985), filme que toma a difícil tarefa de recontar memórias ao passo que as eterniza em quadros, criando uma espécie de distanciamento pictorial (é um filme de composição minuciosa, uma reconstrução tanto sentimental como arquitetônica, cenográfica) que se preocupa menos em recriar sensações e mais em re-encenar momentos de outrora.
Já aqui, filme central da estética do fluxo (talvez o momento/tendência definidor do início dos anos 2000), Hsien segue filmando o passado: a protagonista narra a própria vida em terceira pessoa, bons dez anos distanciados, mas o que vemos não é uma tentativa de encontrar momentos e/ou respostas, mas de sentir de novo. O curioso é que, aprendemos ao assistir o filme, essas não parecem ser memórias que alguém gostaria de reviver: ao narrar as idas e vindas de um relacionamento abusivo, Vicky não dá motivos para isso.
Olho então para tendências da minha geração, um pouco mais jovem que a de Vicky, e jovem demais para sequer lembrar ou entender a troca do milênio. Se a forma do filme transforma sua matéria em algo fluido e homogêneo, dotado tanto de uma instabilidade de movimento como de uma textura difusa e fugaz, a própria natureza de Vicky alude para a as instabilidades psicológicas de jovens que foram do analógico ao digital, que do dia para a noite estavam conectados com o mundo todo em uma fase transitória, onde o pouco é muito e o muito se torna então desesperador. Se em clássicos de Ozu, Naruse, Yang, Mu os sentimentos eram reprimidos por amarras sociais e morais (ambas invenções, sempre bom lembrar), nesse Hsien talvez seja só o conforto que faça com que aquela guria, linda e querida por todos a sua volta, seja incapaz de fugir dessa espiral destrutiva.
Uma espécie de centrifugação que foge da herança de Vertigo (1958), o filme, e remete as alucinações, aos sonhos febris de uma Maya Deren. A diferença é que se com a diretora experimental as narrativas eram abstratas, em Millenium Mambo nem todas as luzes neon e as texturas camaleonicas retiram da narrativa seu caráter mundano, cotidiano, comum. Presa na própria vida, enquanto o mundo acontece em um plano diferente, ela percebe que o tempo passa por, e ao redor dela.
CADA CENA, UMA SENSAÇÃO
Kenji Mizoguchi, cineasta de língua própria mas que experimentou com outras tantas (e ele foi de fato da arquitetura do olhar Hitchcockiano ao que poderíamos chamar de um fluxo ancestral com seus longos planos), tinha um famoso dizer: uma cena, um plano. Algo que Hsien parece adotar, mas dispensando a organização espacial de Mizoguchi - que criava diferentes quadros dentro de uma mesma cena, uma espécie de abordagem sintética que procurava um impacto analítico -, e procurando transformar toda a duração do plano em uma mesma coisa.
É como se o longa não buscasse imagens chave, e sim um desprendimento completo da relação cinema-pintura. Se existem belas imagens ao longo de Millenium Mambo, estas dependem mais à ambientação e menos à composição - algo que até remete ao impressionismo de Monet ou mesmo de Munch, aquela espécie de arte móvel, onde é impossível se ter uma compreensão concreta, onde a mistura de cores e pinceladas irregulares não buscam linhas geométricas precisas, mas expressar sensações abstratas demais para serem encenadas com a matéria mais objetiva e concreta do mundo.
Mas não seria isso o potencial máximo dessa nova tendência? Um cinema de puro movimento, mesmo quando este movimento é estático, quando não passa de uma menina indo e vindo, ou mesmo sentando e ficando. As cenas de Millenium Mambo, mais que filmes como os de Van Sant ou mesmo os de Claire Denis, parecem se desprender completamente dessa busca idealizada por imagens. Não há a centralização gamificada dos corredores da escola, ou a sexualidade simbolizada nos corpos. Não há nada que não cor e movimento.
O resultado é um filme que, apesar da distância que ainda não compreendo de O Tempo de Viver e o Tempo de Morrer por não ter visto os filmes que a percorrem, também é sobre uma coleção. De memórias que dessa vez não se organizam como quadros em uma parede, mas se misturam e que, toda vez que acessadas, trazem de volta um tempo de metamorfose coletiva e instabilidade individual. Um tempo que não volta, e que aqueles que viveram parecem ainda estar tentando compreender pois, sempre que dele se lembram, não conseguem visualizar nada se não essa mistura de gostos, sons, cheiros. Sensações.