Crítica | Amores Expressos

TEMPO DE DESENCONTRO

Acelerando para desacelerar, Wong Kar-wai faz filme que suspende o tempo e se apaixona pelos 0,01 cm de espaço


Já havia assistido Amores Expressos anos antes (não lembro exatamente quando), mas decidi rever depois de uma série de acontecimentos curiosos e transitórios e, exilado na praia por conta das enchentes no Rio Grande do Sul (em quarentena semelhante aquela de quatro anos atrás que me fez nascer para a cinefilia), coloquei o filme para tocar tarde da noite, acompanhado por meus irmãos de 12 e 14 anos.

O primeiro comentário, por mais óbvio que pudesse ser, não poderia ser mais eloquente. Ao ver as imagens rápidas-mas-devagares de personagens se esgueirando pelas entranhas de um centro comercial, os dois associaram o efeito aos típicos bugs dos aplicativos de streaming, que alteraram tanto a forma de escolhermos o que assistir, como os problemas que surgem ao assistir algo em casa. Se antes eram os comerciais, as edições impostas pelos canais de TV e a possibilidade de um mal sinal (ou, no caso das locadoras, a “obrigação” de assistir ao filme), agora são os anúncios, o pouco cuidado das empresas com seus aplicativos e a má conexão de internet.

Do jeito mais simples que consegui, expliquei que era uma escolha consciente do diretor, algo que fiz mais vezes ao longo do filme quando acontecimentos aparentemente “inexplicáveis” aconteciam (como o guri que come 31 latas de abacaxi e a guria que decide limpar o apartamento do crush sem que ele saiba - e eles se divertiram muito essas duas partes) e que, mesmo que levando como piada, eles logo começaram a reduzir tudo àquilo que, vai e vem, considero o tema central tanto desse filme, como de todo o Cinema de Wong Kar-wai.

Em um comentário infeliz, Roger Ebert disse que a apreciação de Amores Expressos vem de um conhecimento prévio sobre cinema e uma preocupação pessoal com estilo: Você gosta pelo que sabe sobre filme, e não sobre o que o filme sabe sobre a vida. Algo que, sejamos sinceros, alguém poderia dizer com um pouco mais de propriedade sobre Godard (a quem ele também menciona), mas que me parece ser um apontamento tão deslocado quanto o cachorrinho em cima da mesa.

Porque Amores Expressos, por mais que guarde surpresas para aqueles que reconhecem o disfarce de femme fatale, e entendem um mínimo sobre a influência ocidental na identidade de Hong Kong (das músicas ao fast food), é um filme sobre aqueles 0,01 centímetros que separam duas pessoas, e que Kar-wai tão graciosamente consegue filmar entre suas acelerações e desacelerações. Pois sua língua pode comunicar a modernidade líquida, pode falar em não perceber o tempo passar enquanto sentimos ele parado, pode ser sobre comidas enlatadas e pós-romances em um mundo prestes a se tornar conectado.

Mas ainda é sobre o acaso e o amor, duas coisas que todos entendemos pelo menos um pouco, e que meus irmãos se divertiram em repetir como respostas para todas as idiossincrasias das criaturas que os divertiram por uma hora e quarenta antes de irem dormir. E amanhã é sempre um novo dia.

9

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