Crítica | Carranca - Urias
Me lembro de ter, sem sequer saber o que eram, algumas carrancas em casa quando era pequeno: uma logo na entrada de casa, e outra na cozinha, que seria a entrada dos fundos. Naquela época, os rostos intimidadores e zoomorficos não significavam nada para mim a não ser arte de negros, sem uma dimensão espiritual ou religiosa.
Carrancas são, geralmente, colocadas em proas de barcos. Talhadas em madeira, são um cartão de apresentação para todos os espíritos que pudessem ameaçar a embarcação. Esses objetos decorativo-utilitários representam seres entre o humano e o animal, o espírito e o racional. Dando menos destaque a distinção ocidental entre binarismos e mais a possível união de pulsões distintas.
Urias decide assim nomear seu mais recente projeto: CARRANCA. Sendo o mar símbolo de esperança e desespero, o disco conta a jornada de uma travessia, entre passado, futuro e presente. Não sendo exatamente coeso - afinal, poucas memórias são coesas, poucos futuros podem ser sonhados sem lacunas e poucos presentes podem ser vívidos e interpretados simultaneamente -, a força das músicas está na criação de uma fantasia mais real que o real. Se as carrancas são representações de seres entre o humano e o animal, a travessia realizada não é apenas entre uma costa e outra, ao recontar o tráfico de escravizados, mas espiritual. Entre o terreno e os céus.
Retomando desde os nefastos tempos colonizadores, a introdução do álbum A Liberdade, enunciada por Marcinha do Corintho, joga com a ideia de libertação por um viés parecido com o de Walter Benjamin, que diz nunca ter existido “um documento de cultura que não fosse simultaneamente um documento de barbárie”. A casa-grande evoca os ideais de liberdade, através de um discurso meritocrático no qual os próprios marginalizados se apoiam em alguns momentos, apenas para recusar, rejeitar e reprimir os vindos da senzala. Seguida da faixa Deus, com participação de Criolo, a expropriação segue a galope agora na dimensão cultural e religiosa. Nela, o sequestro de símbolos e a imposição da religião cristã é acompanhada dos ritmos mais vigorosos do álbum, expondo a relação intrínseca entre subalternização e recusa.
“Voltarei para o mar, rastejando se for preciso
Voltarei para as minhas águas e as minhas terras
E me vingarei”
Quando A Fonte Secar explora a noção do Brasil construído pelo trabalho - antes não remunerado e agora, em sua maioria, mal remunerado - da população preta. As inúmeras gerações que não tiveram o devido reconhecimento, seja material ou simbólico, e a certeza de que quando esse trabalho for descartado “todos vão saber”. O retorno do invisibilizado ocorrendo na própria ausência. Em Vénus Noir, Urias, desenvolve a temática da exploração em direção a hipersexualização dos corpos negros, aludindo a história de Saartjie Baartman, mulher essa que foi transformada em espetáculo na Europa durante o século XIX.
Além disso, a necessidade de sempre se provar como artista também compõe o cenário de exploração no qual artistas negros se encontram esmagados pela pressão por visualizações, reproduções, etc. tendo sua obra validada apenas após alguma premiação. (Isso, quando não acontece esse tipo de pataquada como a que o Grammy fez logo após a Beyoncé vencer a categoria de música country. Não parece uma merda coincidência). Em contraste às duas canções anteriores, Vontade de Voar, salienta o lado libertador de continuar se reinventando, se adaptando aos ambientes que a rejeitam, seja pelo viés racial, de gênero ou mesmo religioso, assim, podendo inclusive estar “no paraíso, me sinto incompleta”.
Retomando a ciclicidade das águas e do tempo, o interlúdio Oração, novamente na voz de Marcinha do Corintho, abre alas para o sonhar utópico, no sentido de bom lugar. Etiópia se desenvolve em ritmo de R&B com linhas de baixo que embalam como o mar em dias calmos e com sopros de um dia refrescante de verão. Assim, a Etiópia é tanto esse local ideal onde as tensões raciais não existem, quanto o encontro de um amor que permite vislumbrar o futuro. Seguindo em clima de romance, Águas de Um Mar Azul, provavelmente minha favorita no álbum, faz a ponte entre a emoção e o mundo. A água do mar evocando melancolia e calma. O encontro do passado (o vento, a ideia) com o presente (a areia, a sensação - podendo apenas ser vivenciada no instante). Em harmonia com o refrão os solos de guitarras lamentosas e a explosão dos instrumentos de sopro possibilita que melodia e letra se fundam em uma união arrebatadora (óóóóh!).
“Tudo é bonito, mas só lamento
Que nós brigamos mais uma vez
A sua ausência se faz sentir no ar
O sangue latino me trai cada instante
No olho, no gesto
Meu Deus, quando é que perco a mania de ser tão sentimental?”
Mas após toda ascensão há a queda. Navegar e Se Eu Fosse Você, seguem o tom romântico, mas passam despercebidas. Navegar ainda consegue trazer sonoramente alguma diferenciação do resto das composições trazendo a percussão metálica junto ao beat, mas nada imperdível.
Com Giovani Cidreira, a faixa Herança devolve a obra aos eixos, retratando a necessidade de não esperar a morte para ser reconhecida, ao mesmo tempo que reconhece o valor de seu trabalho como legado, não como fortuna. E Paciência, com Don L, se demonstra claramente a música mais densa do conjunto. Um “rap de mensagem”: tem referência a outros artistas que se inspiram em Urias (quase uma diss, onde a artista mineira tem moral para se afirmar A Melhor); tem referência à ancestralidade e o poder dos espíritos, assim como expressões bíblicas e hindus; e obviamente, críticas ao capitalismo e a destruição moral e ecológica precedente dele. Sinceramente, daria um texto de análise só para essa música.
Antes do ato final, Voz do Brasil (ft. Major RD), somos agraciados com as últimas palavras de Marcinha do Corintho que nos conduz ao carnaval que é a última faixa. Nela, o sample de O Guarani é apropriado para seguir o jogo de máscaras que se apresenta no título do álbum. É a manifestação dos inversos proporcionada pela festa popular que opera nas letras de Urias como celebração e nos versos de Major RD como intimidação.
Se na música com Don L são plantadas sementes, a condução de Urias nos proporciona a mediação necessária para que com Major sejam colhidos os frutos. O desejo de um Brasil que não se venda e que se inspire, assim como a belíssima capa do álbum, em grandes nações como Egito e Etiópia, que dê autonomia e principalmente esperança, que se direcione para um desenvolvimento próprio.