Crítica | O Agente Secreto
O Agente Secreto é muita coisa (e que bom que é)
Me lembro da sessão de estreia de “Retratos Fantasmas”, em Porto Alegre, na Cinemateca Capitólio: estava lotada, tinha a presença confirmada de Kleber Mendonça Filho e eu me sentei bem no meio da última fileira junto da minha namorada. A “promessa” era de que o diretor estaria durante a sessão toda, mas o voo dele tinha atrasado e ele só chegaria no final para um debate.
Filme assistido, Kleber entrou na sala, o público aplaudiu e a primeira pergunta foi do mediador: “quais são seus planos pro futuro? Já tem próximo filme?”. As respostas do diretor durante toda noite foram simples, curtas e claras. Para essa, em específico, ele disse: “meu próximo filme é de ficção, se passa em 1977, tem o Wagner Moura como ator principal e se chama ‘O Agente Secreto’... deve lançar lá por 2025”.
Kleber puxou o celular e tirou uma foto da plateia (dá pra ver eu lá no fundo com um braço levantado dando oi, mas pareço só um borrão). Após isso, a plateia podia fazer algumas perguntas para ele. Fui o primeiro a levantar o braço e não sabia o que queria perguntar, mas, pelo menos, sabia o assunto que eu queria que ele falasse mais: como todos os filmes dele tratam sobre memória de uma maneira diferente.
Para ser sincero, não me lembro da resposta dele, mas sei que, em “O Agente Secreto”, ele continua com a temática de uma memória que volta para assombrar o presente.
Com um elenco de peso, que conta com, além do Wagner Moura no papel principal, Maria Fernanda Cândido, Udo Kier, Gabriel Leone e Thomas Aquino, “O Agente Secreto” é o mais novo filme do diretor brasileiro mais cronicamente online: Kleber Mendonça Filho. Após o sucesso de “Retratos Fantasmas” (2023), esse é o quarto longa ficcional de Kleber, que dirigiu “Bacurau” (2019), “Aquarius” (2016) e “O Som ao Redor” (2012). Vencedor do prêmio de melhor interpretação masculina e de direção, em Cannes, o filme chega oficialmente nas salas de cinema brasileiras no dia 6 de novembro.
Em 1977, Marcelo, um professor universitário especializado em tecnologia, chega em Recife, sua cidade natal, para fugir de um passado complexo e misterioso em São Paulo. Chegando na capital pernambucana, o pesquisador se depara com novas situações que o colocam em risco.
Mais um filme sobre a ditadura?
Em comunidades de cinema na internet, um dos comentários mais batidos sobre o cinema brasileiro é que ele só sabe falar sobre a época da Ditadura Empresarial-Militar brasileira. Um ano após o lançamento do aclamado “Ainda Estou Aqui”, mais um filme nacional que se passa durante os anos 70 chega aos cinemas. Mesmo que o pano de fundo seja o “mesmo”, as diferentes abordagens entre esses dois filmes mostra como ainda há muito de ser explorado nessa temática.
Enquanto o filme de Walter Salles se prende numa história real para criar um melodrama familiar – aqui não trago nenhum desses termos com algum tom meramente pejorativo –, o longa de 2025 decide por flertar com ideias mais abstratas e subjetivas, mostrando uma faceta mais “lúdica” da opressão: pesadelos, uma alta carga de informações visuais e sonoras que sobrecarregam os personagens e os telespectadores, fazendo com que a sensação de perigo, de que estamos sendo vigiados sejam constantes ao longo do filme.
Outro aspecto que esse filme se diferencia de “Ainda Estou Aqui” é o peso que ele dá para o envolvimento empresarial no regime. Me lembrou muito a caracterização e o desenvolvimento dos “vilões” e da corretora no filme “Aquarius”. Além disso, destaca-se um elemento ainda mais extra-oficial da Ditadura: além das Casas de Tortura, houve envolvemento dos militares e de empresários com figuras tipo assassinos de aluguel.
Sendo assim, sinto que a pegada mais surrealista do Kleber – presente no seu curta “Vinil Verde” (2004), por exemplo –, mas sem deixar de tratar sobre o “real”, pode abrir uma nova porta estilística para que novas produções nacionais explorem outras facetas da nossa história, da vida cotidiana e do jeitinho brasileiro.
“Written and directed by Kleber Mendonça Filho”
Depois de assistir “Bacurau”, um dos comentários que mais foram feitos era que o Kleber seria uma espécie de Tarantino nordestino. Por mais tosca que esse tipo de comparação possa soar, esse novo filme solidifica uma aproximação entre os dois diretores: ambos amam cinema, ambos escrevem e dirigem seus filmes carregando a existência de filmes passados. Se podemos juntar eles dois em um termo, talvez ele seja o pós-moderno (na área artística): aquele que referencia a cultura do passado; uma cultura predominantemente “de massas”/”popular”.
Enquanto o Tarantino referencia filmes B dos anos 70, o Kleber traz alguns blockbusters, como “Tubarão” (1975), que, em “O Agente Secreto”, tem um destaque na história. Além disso, seu estilo acaba explorando enquadramentos, técnicas de filmagem que foram muito populares entre os anos 70 e 80 com diretores famosos como Brian de Palma e John Carpenter, como a lente split diopter e efeitos práticos de sangue.
Assim como em “Retratos Fantasmas”, esse filme parece ser uma certa “carta de amor à sétima arte”, mas, ao invés de referenciar meia dúzia de longas, Kleber decide por homenagear o cinema na estrutura: brincando com os gêneros de thriller, terror, filmes policiais e o clima de perseguição dos filmes de Hollywood dos anos 70, como “Todos os Homens do Presidente” (1976), “Serpico” (1973), “O Comboio do Medo” (1977), “Um Tiro na Noite” (1981).
O Agente atira para todos os lados
Talvez dê para afirmar “O Agente Secreto” como o filme mais experimental do Kleber Mendonça Filho. Esse é o mais longo de sua carreira e, mesmo que todos os outros longas ficcionais tenham mais de duas horas, é nesse que o diretor decide por brincar com outros elementos que estão deslocados da narrativa do filme. A primeira cena do longa é uma cold open, uma pequena história que não necessariamente é importante para a trama central do filme, mas que acontece antes dos créditos iniciais (os filmes do 007 utilizam muito essa ferramenta narrativa).
Alguns momentos depois, ao chegar na cidade de Recife, Marcelo se depara com um gato que possui duas cabeças coladas. Mais para o meio do filme, acompanhamos uma dupla de assassinos fora da narrativa principal, lembrando muito o filme “Fargo” (1996). Todas essas coisas de alguma forma “atrapalham” o andamento do filme, como se, ao invés de pegar uma avenida principal para chegar no destino, eles dão algumas voltas a mais para chegar no “mesmo ponto”.
Mesmo assim, esse tipo de “brincadeira” narrativa não atrapalha o longa e só adiciona camadas, núcleos de personagens e dinâmicas que talvez não levem a lugar nenhum, mas que dão uma profundidade para aquela realidade que é muito boa. Claro, alguns personagens vão ficando de fora… mas as escolhas que o filme toma são, na maioria das vezes, bem acertadas.
Pequenos elementos inconclusivos
Entre algumas coisas que me chamaram atenção nesse filme é 1) a recorrência de animais e 2) os mortos não enterrados. Sobre o primeiro, acredito que dá para fazer uma espécie de análise de significantes que o Kleber usa nos seus longas: o cachorro em “O Som ao Redor”, os cupins em “Aquarius”, o pássaro em “Bacurau” e o tubarão em “O Agente Secreto”. Não quero aqui fechar uma teoria sobre a relação sociedade e animais nos filmes de Kleber Mendonça Filho, mas acho que esses detalhes são interessantes.
Sobre o segundo tópico, quero remontar a tragédia de Antígona: Polinices, filho de Édipo e irmão de Antígona, morre e não é sepultado; na peça, Antígona enfrenta Creonte para fazer justiça com o cadáver do irmão. É uma peça interessante, principalmente quando pensamos nas histórias dos desaparecidos das ditaduras latino-americanas dos anos 60 e nos mortos que não passaram pelo ritual próprio.
No filme, há uma série de pessoas que morrem e não são socorridas. Seu corpo é violado até durante a morte: seus membros são decepados ou temos somente as imagens de corpos deitados no chão. Quem se depara com essas imagens é então vítima dessas assombrações: elas aparecem no nosso inconsciente pedindo, pelo menos, um fim justo.
Tratados secretos sobre memória
Com tudo isso, me interessei nesse filme, principalmente, pela forma que ele trata a memória: ela é material. De modo bem parecido com “Bacurau” e “Aquarius”, Kleber mostra o poder da memória através da resistência ao tempo. O passado não resolvido em “O Som ao Redor” assombra aqueles herdeiros do sistema escravocrata; o prédio de “Aquarius” é um monumento de uma Recife que já não existe mais; Bacurau é uma cidade que, por menor que seja, carrega uma história que não pode e não vai ser ignorada; “Retratos Fantasmas” traz uma perspectiva mais espectral da memória que os nossos objetos acabam carregando.
Nesse filme, a memória é sólida. Ela está presente nas marcas de um soco que ficou no punho de alguém. Ela está presente na mancha de sangue que fica na farda de um policial. Ela está gravada em áudios, em documentos.
Em um certo momento do longa, um debate sobre a propriedade da memória é colocada de uma maneira muito interessante da perspectiva comunicacional e histórica: a memória, a informação e as marcas estão para além da nossa consciência. Por ela existir materialmente, não precisamos saber e se lembrar a todo tempo de nossa história.
Um exemplo bem tosco, mas bem fácil de entender é o de que não nos lembramos dos números de celular de pessoas próximas, pois eles estão guardados em nossas agendas digitais no telefone. Assim, podemos pensar que o ato de lembrar deixa de ser só uma série de combinações binaurais para uma ato de reconsiderar o passado e a sua importância: lembrar está mais como um ato interpretativo de re-organizar a narrativa de arquivos dispostos.