Crítica | Racing Mount Pleasant - rACING MOUNT PLEASANT

O mundo como vontade e como representação


Lar. Conceito metafísico.

Não é exatamente uma casa, nem um quarto, tampouco um cômodo. Não é um espaço, uma pessoa, uma memória. Mas também é tudo isso - às vezes, inclusive, ao mesmo tempo.

Nesse jogo de abstrações e nessa busca por definições, eu me deparo - dentro desse gênero-sem-gênero propulsionado recentemente pela banda inglesa Black Country, New Road (que tenho tatuada no meu antebraço) - com músicas de uma nova banda que parecem buscar por significado e identificação ao mesmo tempo que voam o mais rápido que podem pra longe disso, com medo de serem capturadas e enclausuradas. Se forem alcançadas, a magia acaba.


Tenho a necessidade de falar sobre mim antes de falar sobre os álbuns que escrevo. Racing Mount Pleasant é um álbum pra se ouvir depois da terapia. Daquelas sessões bem confusas, onde se sai mais perdido do que se entrou 50 minutos antes. Onde se começa falando de seu relacionamento prestes a desmoronar e se termina a 1.200 quilômetros de distância falando de um incidente de infância que moldou por completo sua personalidade.

Então sim, eu conheci Racing Mount Pleasant depois de 50 minutos de divagações, associações e muito choro. E eu geralmente tenho esse hábito de caminhar sem tempo definido depois de uma sessão, me negando a seguir com meu dia automatizado. Preciso respirar. Preciso me preencher de tudo que foi dito pra tudo aquilo não ter sido apenas palavras vomitadas e um alívio momentâneo.

E nesse sentido, a banda, que é formada por 7 músicos, esbanja uma complexidade em seus arranjos que conversa diretamente com esse vazio pós-analítico, preenchendo-o (ou mais especificamente, me preenchendo) com uma quantidade incontável de instrumentos que aparecem, desaparecem e reaparecem sem o menor aviso.


Então voltamos pra temática do lar. Inicialmente, me convenci de que era uma pessoa. A primeira faixa do disco, Your New Place, dá início a tudo com seu clarinete respirando vagarosa e lentamente,  como se anunciasse um amanhecer: “Its a mess”, anuncia Sam DuBose na primeira estrofe.

A faixa vai ganhando subcamadas instrumentais otimistas enquanto o vocalista descreve, com pesar, um local do qual não faz (mais) parte. O violino do segundo verso possui uma bondade tão grande que chego a achar que ele sente pena do eulírico e, ao fim da música  (que poderia ter um texto só pra si) ao assumir um tom apocalíptico, com sua bateria saliente e arrebatadora, eles dão vida ao que parece ser uma memória: Well, here we are, On top of it all, Your hands in mine. Os próximos 2 minutos são puramente instrumentais e parecem exibir um curta de uma vida a dois, como em La La Land.

Francis Bacon diz que a magia é a ciência da manipulação das formas com o objetivo de transformar os corpos naturais. Além disso, ele destaca que a magia carece de clareza em relação às suas técnicas e instrumentos que determinem os seus resultados.

Basicamente, Racing Mount Pleasant constrói seu apelo nessa desconstrução/reconstrução constante. É como se você mudasse os móveis de um cômodo a cada semana, visando uma renovação de ares sem perceber que senta no mesmo sofá, em cima do mesmo chão e debaixo do mesmo teto. Por exemplo, quando as trompas estridentes em Emily soam como gritos de dor naquele quarto, mesmo que ela já tenha se mudado para outro lugar (Your New Place) ao passo que o narrador sofre em luto:

We only danced behind closed doors,
And the kiss from your lips on my forehead, it burns,
And the scorching cold of that November night will be forevermore

(Só dançamos a portas fechadas, e o beijo dos seus lábios na minha testa queima, e o frio escaldante daquela noite de novembro ficará para sempre na memória).

Ao passo que eles sabem dar vida a esses grandes momentos cinemáticos e orquestrais, eles também conseguem guardar lindas e delicadas lembranças numa caixinha de música (You), cuja bailarina sempre parece disposta a gentilmente se apresentar quando convocada (Recognizable hands, Nails stripped and chipped, Here I’ll hold you, You don’t have to move).

Ao final do álbum, você pode se sentir como se tivesse vivido um evento catártico a cada faixa, porém sem qualquer conclusão definitiva. Cada música pinta um novo lar, diferente em cada nova tela, manuseando o pincel de maneiras diferentes, com cores diferentes, métodos imprevisíveis, prezando pela liberdade do sentimentalismo sem nunca tentar refreá-lo.

É impossível de se encontrar uma razão suficiente nos procedimentos mágicos. Do porquê denominamos algo mágico quando presenciamos. Qual o segredo da coisa que pouco reflete sobre si mesma e pouco gera reflexão. É mágico porque é mágico. Pra Schopenhauer, o segredo implica também na impossibilidade de um conhecimento técnico da magia, que é substituído pelo sentimento de que a vontade é onipotente em si mesma.

Na faixa final, Your Old Place, o eulírico se arrisca a sair da sua redoma de criações, memórias e devaneios, percebendo que elas, naquele ponto, fazem parte de quem ele é sem que o esforço ativo seja necessário na luta contra o esquecimento. Melodias, timbres, referências a outras faixas são usadas aqui. Há turbulência em cada pequeno fato, como ele mesmo verbaliza (There’s turbulence in every little fact).

Mas tudo ganha vida novamente. A bateria e os instrumentos de sopro vão se encontrando e tomando conta do ambiente, e as paredes ao nosso redor vão se fechando de forma esquematizada, nos deixando de frente com uma única pessoa e o silêncio:

Hello, nice to meet you, wanna dance?
Oh my god, is this just how it ends?

E assim acaba: não com uma resposta, mas com um lugar, uma pessoa, uma memória - o eco de uma pergunta. Tudo ao mesmo tempo.

9

Anterior
Anterior

Crítica | Horses - Patti Smith

Próximo
Próximo

Crítica | Carranca - Urias