Crítica | Horses - Patti Smith
Horses (1975) anuncia, já em seu próprio título, a sensação frenética de liberdade e vigor que aguarda o ouvinte nas oito faixas do álbum. O debut de Patti Smith rasga o tempo e o silêncio com o sentimento de rebeldia, deslocamento e o rock n’ roll mais cru que os anos 70 poderiam oferecer em Nova Iorque. Completando 50 anos em 2025, Horses se mantém como um álbum atemporal, refrescante e cheio de personalidade.
“Got to lose control, got to lose control
Got to lose control and then you take control”
Em 1975, outros incríveis clássicos eram lançados, expondo o zeitgeist da cultura ocidental da melhor forma possível: Pink Floyd com Wish You Were Here, Bob Dylan com Blood on the Tracks, Frank Zappa com One Size Fits All e por aí vai. É nesse contexto que Smith surge como protagonista em uma cena alternativa efervescente, que pipocava sentimentos de desconexão, sonhos, vida e, acima de tudo, energia.
“Energia” talvez seja de fato o fio-condutor de todo esse projeto, que ajuda a dar um pontapé no movimento punk e inspira muitos outros artistas, tanto na época como hoje em dia (vide a referência à Patti Smith no último lançamento de Rosalía, LUX, na canção La Yugular). De certa forma, é impossível não se deixar atravessar pela potência, postura e energia de Smith, que ocupa a sala com sua presença em silêncio - e mais ainda quando compartilha seus pensamentos e arte.
Cresci escutando rock e demorei para cruzar com Patti. O nome aparecia sempre, carregado, pesado (no melhor sentido possível da palavra), em todos os lugares, mas a barreira de escutar o desconhecido me manteve longe da cantora por muito tempo. Foi durante a pandemia a primeira vez que dei play em Horses e me senti, de fato, em cima de um cavalo: explorando tudo ao meu redor em alta velocidade e com o vento gelado batendo no rosto. Não só pelos ritmos energéticos e guitarras arranhadas (que sim, são sempre muito bem-vindos nas obras da cantora), mas por toda essa postura de Patti, que se coloca como uma protagonista crua e magnética em tudo que se propõe.
“O que é cavalo? É liberdade tão indomável que se torna inútil aprisioná-lo para que sirva ao homem: deixa-se domesticar mas com um simples movimento de safanão rebelde de cabeça — sacudindo a crina como a uma solta cabeleira — mostra que sua íntima natureza é sempre bravia e límpida e livre.”
Tentando não bater no clichê de “vocalista feminina”, seria impossível não falar sobre o destaque dessa mulher em uma cena que foi sempre tão pensada e protagonizada por homens, o rock. Eu, sendo uma mulher ouvinte, mentiria se falasse que ao terminar de ouvir o álbum não saio inspirada a tentar ser um pouco mais eu, independente dos outros à minha volta.
Gloria abre o álbum mostrando a sagacidade de Patti em contar uma história com sensibilidade, colocando a si mesma e os demais personagens da canção carregados de uma subjetividade impressionante. A versão original da música é do grupo Them, com Van Morrison no vocal, onde ele fala sobre uma mulher encantadora que dá prazer sexual aos outros. E só. Smith traz profundidade à canção, se colocando como protagonista da história também, e abrindo o álbum com um dos parágrafos que acredito melhor expor suas crenças ao público sem nenhum pudor:
“Jesus died for somebody’s sins but not mine
Melting in a pot of thieves, wild card up my sleeve
Thick, heart of stone, my sins, my ownThey belong to me, me
People said beware, but I don’t care
Their words are just rules and regulations to me, me”
Em seguida, Redondo Beach entra com uma levada de reggae, contando sobre uma menina que se suicida entrando no mar. Uma canção composta para sua irmã, após uma discussão entre ambas, onde Patti reflete sobre sua culpa e o medo da ausência da outra em sua vida. Mulheres são um tema comum no álbum, bem como família, como veremos a seguir.
A terceira faixa é Birdland e foi inspirada no livro Book of Dreams, de Peter Reich. Patti fala sobre um filho que perdeu o pai, explorando a dificuldade do luto e a ilusão de esperança através de imagens do além, alienígenas, objetos não identificados, criada pelo sonho de reencontrar seu pai nos céus. O piano dramático contrasta com a voz ousada de Smith, que lidera sensações de angústia em meio à sonoridade sutilmente punk de sua guitarra dedilhada.
Free Money retorna à vida pessoal de Patti e sua família, falando da relação de sua mãe com o dinheiro e sobre a vida na pobreza. Na faixa, a personagem imagina tudo que poderia aproveitar da vida se fosse rica, mas sempre partindo de um ponto de vista de uma fantasia, um desejo não-realizado:
“See those dollar bills go swirling ‘round my bed
I know they’re stolen, but I don’t feel bad
I take that money, buy you things you never had
Oh, baby, it would mean so much to me
Oh, baby, to buy you all the things you need for free.”
Ainda sobre isso, “[Deleuze diz que] ‘O desejo nunca deve ser interpretado, é ele que experimenta’. É como se o nosso desejo fosse o sujeito, e nós, o objeto. O nosso desejo fala, nós ouvimos. O nosso desejo age, nós assistimos” (Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação, 2013). E, ainda assim, Patti coloca sua personagem, sua mãe, em posição desejante, refletindo sobre o futuro e suas vontades. Um ator paralisado por si mesmo, sonhando diante das (poucas) possibilidades materiais que a vida tem a oferecer.
A canção Kimberly segue na temática da família, sendo composta para sua irmã mais nova, e traz novamente referências católicas para a obra da cantora (And I feel like just some misplaced Joan Of Arc / And the cause is you lookin' up at me). As últimas três músicas do álbum, Break It Up, Land e Elegie também são clássicos da cantora, mostrando suas referências - de Rimbaud à literatura grega - e sua capacidade de criar histórias a partir de suas próprias experiências.
“Eu penso que o nosso sentimento da vida caminha sempre com um atraso de meio ou mesmo de um século em relação à verdadeira vida, à vida real.”
Existe pouco, senão nada, a se dizer sobre esse álbum que já não tenha sido dito por outras pessoas. Pra mim, o mais impactante é pensar seu lançamento como álbum de estreia, já tão cheio de maturidade e com temáticas tão únicas que não deixam de se relacionar entre si. Produzido por John Cale, do Velvet Underground, acho que realmente não poderíamos esperar diferente. Patti entrega tudo que se pode querer do rock em 1975, além de trazer respiro, personalidade e novidade para o movimento na época.
Horses é, do começo ao fim, essa sensação tremenda de vida apesar de. Vida, apesar dos outros, das dificuldades, dos obstáculos, do dinheiro, da morte, de Deus. Fico feliz em ver personagens femininas imaginadas, tanto no vocal como nas letras, ocupando tanto protagonismo nas canções. E lógico, saio da escuta inspirada a ser mais, querer mais, ter fome, ter energia pra encarar minhas próprias experiências e temáticas com poesia.
“There must be something I can dream tonight
The air is filled with the moves of you
All the fire is frozen yet still
I have the will”Patti Smith, na canção Elegie.