Crítica | O Piano
Perdido na Linguagem
O Piano usa de uma amostra específica para estabelecer as possibilidades e impossibilidades da comunicação e expressão humana
Os personagens: uma mulher “muda” casada contra sua vontade, um marido que não entende a linguagem dos sinais, um amante analfabeto, uma filha que não entende a linguagem dos adultos, figurantes Maori que não entendem o Ocidente. O cenário: uma ilha pantanosa onde a única maneira de se locomover é colocando toras de madeira na lama.
É um filme que nem precisaria de uma premissa para gerar tensão. Qualquer ser humano em uma situação como essa encontraria seus próprios problemas - que os que acontecem no filme de Jane Campion sejam semelhantes ao do livro de Jane Mander, The Story of a Newzealand River (1920), pouco ou nada me interessam.
O fato é que essa impossibilidade de comunicação gera possibilidades narrativas poderosas. Desde a dificuldade de expressar sentimentos e necessidades básicas, à brilhante cena onde os nativos atacam a peça de teatro por julgarem que as mulheres “ensanguentadas” estavam em perigo.
Incomunicabilidade que amplifica, também, a opressão na qual Ada se encontra. Vendida para seu novo marido, a figura frígida de Holly Hunter parece um mecanismo de defesa para despertar apenas um estranhamento natural, adjacente ao fato de que ninguém, nem ela, sabe o motivo de ter escolhido parar de falar. A situação não parece das piores conforme percebemos que há certa paciência nos atos do marido, interpretado por Sam Neil, mas os enquadramentos de Campion provocam um desconforto inerente.
A diretora explora nas composições ao rejeitar a polidez que a era Vitoriana e seus vestidos de porta-bandeira sugerem. As cores são sugadas, e a ausência de calor nas externas relembra a todo momento a desolação, e a umidade, do lugar. Mas se o que filma é abrasivo, como Campion conecta os planos gera uma volatilidade que torna a narrativa imprevisível e magnética. A manipulação do espaço pela edição (de Veronika Jenet) reflete a paisagem tortuosa, por vezes escondendo a câmera por trás de galhos que rimam com os dedos cobrindo os olhos do primeiro plano do filme. Quando Ada vai ao encontro do amante (no caso, o piano), ela precisa subir ou descer, e a impressão é de que está sempre prestes a cair.
A VISÃO FEMININA, LIMITADA E OPRIMIDA, SOBRE UM MUNDO DE MASCULINIDAEDS
Apesar de ser o primeiro filme que assisto da cineasta, sua autoralidade é tão forte que na minha sessão dupla com O Ataque dos Cães foi possível perceber semelhanças evidentes, mesmo em filmes separados por quase três décadas.
Recentemente O Piano foi considerado o melhor filme da história dirigido por uma mulher, em pesquisa da BBC com 368 votantes, o que torna ainda mais curioso que este seja, e a diretora faça, um filme masculino pela perspectiva feminina.
Apesar de ambos aparecerem nus, é ele quem a câmera parece seguir. É Ada quem delimita até onde vão os encontros, é ela quem toca o marido, são seus desejos que acabam por serem consumados, não os dos outros.
Em um cenário tão desprovido de qualquer afeto e conforto, criar sensualidade só poderia se tornar mais impossível caso ela custasse os dedos da mão. Campion consegue transformar uma dinâmica de abuso na válvula de escape de Ada, o que exige um nível elevado de compreensão sobre a situação daquelas duas pessoas. De seu modo bruto, o personagem de Keitel queria apenas se aproximar da mulher por quem se apaixonou, e por qual tanto a comunicação, como outras amarras, tornavam impossível.
E é aí que entra a maior qualidade de Campion no filme, extrair de seus atores a única linguagem que todos conhecemos. A imagem de Keitel pelado a assusta, mas o ator consegue retrair qualquer intenção de fazer mal, ou sequer de invadir o espaço de Hunter. Que por sua vez constrói o desejo da personagem de maneira quase imperceptível, da relutância, à aceitação, à entrega. Em uma situação degradante, Ada é capaz de entender as intenções de George, gerando então o laço comunicacional que faltava entre os dois - a confidência do sussurro sendo a representação ideal e outro ponto de conexão com Lost In Translation, dez anos depois.
Anna Paquin, então, é a epítome de todos esses temas e como essas expressões inventadas, por si só, são fadadas à suas próprias limitações. Uma menina forçada a expressar emoções de adulto para conectar a mãe aos outros à sua volta. Ela fala, toca, canta, lê, escreve e conhece a linguagem dos sinais. Mas de que tudo adianta se não entende o mundo no qual está inserido?
Não sei se o final positivo é mais impactante do que a assombrosa imagem de uma mulher que decide abandonar o mundo junto à sua única forma de expressão, sei menos ainda se sugerir que a perda do piano abriria Ada para o mundo é uma boa ideia - a arte seria, então, um substituto ou um empecilho?