Crítica | Armadilha

SOBRE O QUE NÃO SE VÊ

Em filme curioso, M. Night Shyamalan propõe análise sobre a imagem em tempos pós-modernos


Talvez o único diretor mainstream contemporâneo que eventualmente possa ter sua carreira destrinchada em fases é M. Night Shyamalan.

Dos poucos representantes de tradições há muito deixadas de lado e vocal em sua insatisfação com a mesmice que monopoliza as salas de cinema, o diretor Indo-Americano é também raridade em parecer construir uma filmografia que não se prende à megalomania do projeto (Nolan, Tarantino, Villeneuve), e sim a um ideal artístico que parece estar em constante desenvolvimento.

Podemos, grosso modo, dividir sua carreira entre infestações do sobrenatural em resquícios noventistas realistas (O Sexto Sentido, Corpo Fechado, Sinais), manifestações diretas sobre a fé, o mundo e a estória (A Vila, A Dama na Água, Fim dos Tempos), uma breve empreitada refém de estúdios (Avatar, Depois da Terra), investigações pessoais sobre as propriedades do vidro (A Visita, Fragmentado, Vidro) e, nesta última fase, filmes-experimento.

Com Armadilha (2024) ele parece seguir no projeto iniciado em Tempo (2021) e que talvez já tivesse sido apontado nos dois filmes anteriores, de filmar um lugar fechado que sofre com alguma condição sobrenatural da qual seus protagonistas têm de descobrir, sobreviver e escapar. Em Tempo era a praia que envelhecia as pessoas, em Batem à Porta (2023) os sequestradores que anunciam o fim do mundo e, em armadilha, seu primeiro filme calcado na realidade desde A Visita (e também apenas o terceiro de sua carreira!): um assassino em série que descobre uma armadilha para si próprio em um show musical.

Lendo um pouco sobre o filme, algumas pessoas mencionaram O Segredo da Porta Fechada (1947), de Fritz Lang, e me vem à cabeça também alguns filmes de Hitchcock - Suspeita (1941) e A Sombra de Uma Dúvida (1943) talvez os mais importantes. Filmes sobre esposas (no caso do último, uma sobrinha) que desconfiam que seus maridos escondem algum segredo obscuro, e onde os espaços domésticos representam papel importante na dinâmica e no engendramento de signos e simbolismos.

Em Lang, diretor alemão exilado nos Estados Unidos, o casal se muda para uma casa antiga, cuja arquitetura traz segredos ancestrais de vidas passadas, tenham elas acabado ou apenas mudado. Em Hitchcock, o subúrbio perfeitamente isolado dos terrores da guerra que não atingem o sonho americano, e logo a casa, o lar matrimonial e/ou familiar, se torna corrompido pela suspeita de algo que foi e voltou diferente.

São ideias que me conectam ao que parece ser a ideia central de Shyamalan em Armadilha: o ato de esconder algo, de suspeitar do que está em nossa frente por atrelarmos este algo ao que ocorre quando não está. E Shyamalan, mais que qualquer outro diretor contemporâneo, é o que mais parece evocar toda uma filmografia e espectatorialidade a cada novo filme, oferecendo aos membros de seu culto elementos que permitam conectar o novo filho às outras raízes da família, enquanto ainda mantém o espectador casual interessado na estranheza do projeto como algo singular.

O que me lembra que Fincher e Linklater também fizeram filmes sobre assassinos neste último ano, e embora este de Shyamalan me pareça um filme menor em sua filmografia (que, ao meu ver, supera a dos outros dois), me parece uma adição consciente. É possível dizer, inclusive, que este experimento conjunto dos três (sabe se lá se conversaram sobre isso) configura uma nova fase para os autores norte-americanos, menos preocupada com a megalomania que foi a norma de seus projetos na última década e meia (Mank, Boyhood, Vidro, Nolan, Villeneuve, Tarantino), e mais com explorações com um fim menos ambicioso e mais nobre. Se Fincher desconstroi o filme de assassino como método, e Linklater desconstroi o filme de assassino como texto filosófico, Shyamalan o faz pela imagem.

Ficamos com Shyamalan, e como ele faz um filme sobre um evento gigantesco que é visto de maneira periférica: o show de uma artista Pop (sua filha) que nunca toma posição central da cena, e as ações de um assassino que são descritas e nunca vistas. Ao contrário das estranhas interações entre o protagonista e a mãe da amiga da filha que, com pouca ou nenhuma importância para a estrutura do filme, são filmadas em closes frontais e agudos - que me remeteram quase a uma emulação de Kiyoshi Kurosawa emulando Ozu em Cure (1997), outro filme sobre um assassino. E é curioso que qualquer indício sobrenatural em Armadilha (diferentemente dos últimos dois Shyamalan após sua epopeia em prol do extraordinário com Vidro) seja respondido pela própria aura do cinema de adicionar significados a tudo que ocorre. Os closes continuam com Lady Raven, e seus olhos arregalados que parecem perfeitos para um filme de Dario Argento (lembremos dos corvos e do show em Ópera, 1987).

Talvez Shyamalan esteja nessa desconstrução cênica, de filmar espaços cada vez mais fragmentados, e desfocados, e "desbelos" justamente para propor algo sobre o cinema nos tempos que "vemos" hoje. Todos filmam shows, ninguém os vê, então é impossível ver de fato. E há sempre algo, nosso celular está sempre chamando nossa atenção (pode ser um prisioneiro em um porão ou um novo story do crush do instagram), então é impossível estar onde se está - a interação um para um, então se torna esta coisa desconfortável e que queremos que acabe logo, porque requer uma atenção que não estamos mais dispostos a ter.

Como Side-project, Shyamalan encaminha também sua própria estratégia de dominação mundial, tentando alavancar as carreiras das duas filhas: Saleka, que interpreta a protagonista do filme, e Ishana, cujo pôster de seu filme de estreia pode ser visto em determinado momento da projeção

Por outro lado há também a desconstrução do filme, de não haver reviravoltas quanto à quem de fato é o assassino, e não haver a tensão do como capturá-lo. É tudo mostrado de maneira muito clara no que tange à narrativa, vemos de antemão o que vai ocorrer e não desgrudamos da única criatura que pode isso alterar. Por isso a cena do banheiro, também, parece unir essas duas ideias. A necessidade esquizofrênica do celular e nosso primeiro momento sem enxergar as ações do assassino: o que ele está fazendo? No fim, depois de prender a família, eles escapam pela janela e ele revê na memória (ele, nós não vemos) como fizeram isso, e comenta sobre como nunca tinha visto a própria casa sobre essa luz, justamente essa condição pós-moderna de estar sempre com a cabeça em outro lugar - ou, no caso dele, em outra vida.

Na revelação da esposa, ponto comum de críticas pelo que vi em alguns lugares, Shyamalan me parece fazer a lavagem de roupa suja que muitos de seus filmes flertaram: um momento Cenas de Um Casamento (1974), no qual ela então descreve coisas que viu, mas que seguem em um campo virtual para o espectador.

Armadilha, portanto, me parece um filme sobre o olhar cada vez mais ansioso e fragmentado, sobre estar sempre em outro lugar e nunca presente. Nesse sentido, não é sobre a revelação pelo vídeo, como Vidro, ou sobre a presença no espaço como Batem à Porta, mas sobre coisas que não vemos nem localizamos. Sobre segredos atrás da porta, e aos quais nunca temos acesso.

7.8

Anterior
Anterior

Crítica | King Of New York

Próximo
Próximo

Crítica | Charm - Clairo