Crítica | King Of New York

MITOLOGIA E RENOVAÇÃO

Filme de Abel Ferrara trabalha com estruturas modernas e arquitetura ancestral


O rei de Nova York, mas de qual Nova York?

Sendo apenas o segundo filme que vejo de Abel Ferrara, me vêm algumas coisas na mente. Uma certa conversa com a efervescência de Hong Kong, um desapego com o detalhismo e com obsessões Nova Hollywoodianas de linguagem (muito longe de um Coppola e um tanto de um Scorsese), e uma paixão por captar essa relação de luz e objeto, a Nova York que é iluminada e assim toma vida. Também uma relação com Michael Mann, e mais com seus filmes pós Fogo Contra Fogo (1995), um ponto de ebulição constante, mas que ainda se figuram em algo concreto que pode ser compreendido como o que é.

Não existe cidade mais idealizada que a capital do mundo, filmada desde os primórdios como esse misto de impiedosa selva de pedra e ludibriante fábrica de sonhos. Seu vislumbre a distância entrega o ápice da modernidade humana, mas também seu distanciamento de tudo que é de fato humano. As luzes iluminam, mas também cegam.

E à distância, um outsider, um forasteiro dentro do próprio mundo, que o vê por um reflexo do extracampo, em todas as suas luzes desnorteantes, até que finalmente se esgueira de sua caverna e enxerga, a um rio de distância, alguns poucos prédios - no rosto, tudo entregue, conde Drácula, que tem em suas mãos uma cidade que pode viver apenas em seus momentos e cantos mais obscuros.

A Nova York das entranhas, onde se pode curtir tanto um show de jazz com membros da alta sociedade, como uma festa regada a cocaína e luzes neon azul ao som de rap com peitos de fora. Nada de pizza pra ele (afinal tem uma fraqueza contra o alho), e quando entra no táxi é o anúncio do fim. A Nova York que todos vivem nunca esteve acessível.

Filme que mostra apenas quando quer mostrar: quem tomou o tiro? A movimentação e o enquadramento podem ser simples, uma câmera na mão e uma caminhada do metrô até um táxi. Quem tomou o tiro? A mão na barriga é cansaço, dor, ou estanque? Quem deu o tiro? O plano final, a mão de Drácula e sua adaga auto-imposta revelam, é hora de voltar pro caixão.

8.6

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