Crítica | Everybody Wants Some
2024 tem sido um ano de mudanças consideráveis na minha vida, daqueles que, quando lembramos, parecem longos por terem muitos acontecimentos marcantes.
Talvez como resultado, desde 2019 não escrevo tão pouco, chegando a ficar um mês inteiro sem completar um único texto. E toda vez que encaro o branco da tela, a mesma mistura de sentimentos me acomete, receita conhecida do escritor: a certeza da frivolidade da escrita, a incerteza sobre as próprias habilidades, a dádiva e a maldição do conhecimento, ter o suficiente para saber que nunca se sabe o suficiente.
Recentemente tenho questionado também a minha posição perante o Cinema, a crítica, e tudo entre estes dois. Qual seria minha voz? Como quero escrever? O que procuro com essa escrita? Resposta essa última que me parece a mais fácil: ao passo que gosto do processo de refletir sobre o filme, e que ele me ajuda a formular e organizar e assimilar novas ideias, há a vontade de contribuir com algo para jovens que, um dia como eu, também se emocionam tanto com um texto como com o filme ao qual o texto pertence.
Tenho pensado que o jeito ideal é escrever comentários breves sobre tudo que se assiste, e deixar para "atacar" aqueles filmes com os quais estaria familiarizado. Mas… a vida é muito curta para rever filmes, e logo a ansiedade ataca perante a incapacidade do espectador ansioso.
E então me deparo com este filme de Richard Linklater, que me passou batido até a manhã de um sábado central em todas essas mudanças que comentei mais cedo. Sábado de frio e sol, cada vez mais raridade no Rio Grande do Sul, e que sugerem uma paz climática que gosto tanto e que já não mais existe. Dia que me lembra dos meus dias em outros países, mais próximos do mundo que vemos na tela: a fraternidade de um time de baseball dias antes do início do ano letivo.
É curioso como Linklater, mesmo com tantos filmes amplamente conhecidos (e reconhecidos), não seja alçado ao patamar de autor como outros de seus contemporâneos norte-americanos. Talvez por fazer filmes leves demais, que nunca fazem alarde, e que raramente são comentados para além do que são. Mesmo o dispositivo de Boyhood (2014), filmado ao longo de 12 anos, pareceu apenas um tópico de interesse no debate do Oscar, incríveis dez anos atrás.
E agora meu texto entra em um loop inevitável: tinha 18 anos quando assisti Boyhood pela primeira vez, havia acabado de entrar na faculdade, e vivia um momento levemente parecido com o de hoje, com 27, quando entro no mestrado (e mais alguns detalhes que mantenho privado). O efeito foi arrebatador: nenhum filme, dos milhares que vi na vida, conversou tanto comigo como um onde o protagonista começa o dia assistindo Dragon Ball Z e o termina assistindo a mãe e o pai, separados, discutirem pela janela. Lembro, à época, de dizer a um amigo que aquele era o filme que tinha me feito querer escrever sobre Cinema. Ele perguntou se o filme era sobre isso, sobre crítica.
E não é, mas é.
Escrever, e mais precisamente escrever crítica, não passa de um exercício de autoconhecimento. Aceitas as noções de que a imparcialidade é um mito e de que não existe resposta objetiva quando se fala de arte, o sentimento é libertador. Afinal, cá estou, em um texto sobre Everybody Wants Some!!, no qual ainda nem falei sobre o filme, mas é tudo sobre ele.
Formando uma espécie de trilogia informal com Escola de Rock (2003) e Boyhood, é curioso ver como a ansiedade, em Linklater, é crescente ao longo de sua carreira. Sempre muito solto em suas entrevistas, a impressão não é de um artista atormentado com o próprio fim, mesmo que isso seja assunto recorrente em praticamente todos os seus filmes. A finitude dos encontros da Trilogia do Antes, a sensação transitória por todo Boyhood, os últimos dias restantes nesse Everybody Wants Some!!.
Talvez seja esse seu filme mais nostálgico e apaixonado também? Se em todos os outros a ressignificação do espaço se dá pela livre exploração destes, cada milímetro aqui é recriado ao detalhe, para evocar os sentimentos de uma época que não volta mais - tanto do ponto de vista pessoal, das sensações de se estar entrando na faculdade, como do coletivo, da cultura oitentista. A caracterização é a mais pesada de todos os seus filmes não animados, os figurinos beiram a paródia, e a idealização de um mundo cenário banhado de sol poderia criar um certo distanciamento, de um filme-comentário, mas Linklater é discípulo de Éric Rohmer, e esse é seu Perceval (1978). Acreditam tanto naquele mundo seus protagonistas que nele se acoplam, e acabam por torná-lo vivo.
Já aqui ele começa também a trabalhar algumas ideias que se concretizaram anos depois, em Hit Man (2024) e seus diálogos esquizofrênicos sobre identidade e comportamento. Em uma cena, um dos jogadores é expulso em diálogo que ocorre em tela, mas que não ouvimos. Ele só vai embora. É o momento mais Hong Sang-soo de sua carreira (aquele, outro rohmeriano), um devaneio captado pela câmera que acaba por reforçar uma ideia periférica do filme, mas que cada vez mais se aproxima do centro. Entre fantasias, e máscaras, e comportamentos, e identidades falsas para se continuar vivendo a vida dos sonhos, Everybody Wants Some!! é um filme sobre se adaptar a um novo mundo, este, finito em toda sua aparente perfeição.
E logo as aulas começam, e logo elas terminam. E aqui estamos, os atores de quase 30 anos interpretando jovens de quase 20, olhando para si mesmos como um portal para um passado que pode, ou não, ter acontecido. E então todas as inseguranças e incertezas voltam e nos questionamos sobre onde estamos, porque nunca de novo, o filme de Linklater sugere, acreditaremos tanto em algo que este algo se torne digno de nos lembrarmos com a mesma paixão e nostalgia que ele lembra daqueles dias texanos idealizados dos anos 80.
Todos querem um pouco, e todos queremos muito. Mas não volta. Não adianta.