Crítica | Van Gogh (1991)

O QUE IMPORTA É PINTAR

Ao relevar os fatos, cinebiografia revela interpretação mitológica de Van Gogh


Assistindo a Van Gogh, de Maurice Pialat, me peguei pensando sobre decupagem, o que é curioso em um filme que parece menos calcado nessa que em uma relação mais "real" com o mundo. 

Sendo apenas o segundo que vi dele (Aos Nossos Amores, 1983), é um exercício interessante escrever sobre o filme já estando sensibilizado ao estilo de Pialat, mas ainda sem o conhecê-lo profundamente. Em ambos os filmes, retratos bastante mundanos e humanos, quase triviais em seus pequenos dramas e tragédias, de protagonistas atormentados pelas intempéries de vidas presas em seus respectivos microcosmos (lá uma família disfuncional, aqui, o grupo de pessoas que cercaram Van Gogh em seus últimos dias). 

Em ambos os filmes, o olhar de Pialat parece ser, ao mesmo tempo, cético (o pressentimento de morte) e apaixonado (a ode ao corpo feminino), distante (a câmera nunca se aproxima) e íntimo (e por isso revela o real), indiferente quanto às expectativas externas (do Cinema ao seu redor) e internas (do seu próprio Cinema). Van Gogh é um filme que não segue obrigações factuais (nada de orelha cortada), nem mesmo narrativas (a abundância de elipses e lacunas), se preocupa menos com um retrato fidedigno do pintor e sua história, e mais com uma espécie de elegia.

A maneira como o diretor assimila tudo isso é ao mesmo tempo inspiradora e fúnebre: um filme sem cores marcantes (com a exceção de uma única cena, que comento mais abaixo), onde a câmera não reage a gestos ou ícones, onde as interações e todos os elementos estão organizados sob um regime rigoroso de mise-en-scene, onde mesmo a liberdade para dizer, mover, interpretar parece regida a risca. Assim como Aos Nosso Amores, é um filme onde o plano se torna quase invisível, por mais que o diretor tenha um olhar privilegiado para quadros e suas possíveis violações - em um deles, Marguerite aparece na tela pela janela ao fundo, mas ao perceber que não deveria estar ali naquele momento, rapidamente volta para o extracampo.

Características essas que parecem ser assimiladas com a própria imagem que o filme tem de seu objeto de estudo: talvez o pintor mais renomado e referenciado pelas massas na contemporaneidade, Van Gogh teve muitos aspectos de sua vida romantizados e canonizados na cultura popular, mesmo sua falta de sucesso em vida se tornou jargão na internet e motivo para falsa inspiração.

O curioso é que Pialat pinta um caminho diferente para chegar nessa mesma investigação mitológica: se o Van Gogh que vemos é nada mais que um homem comum horas insatisfeito com tudo horas refém de impulsos carnais e sentimentais, a sensação é de uma idolatria que vai além da romantização. Viver como Van Gogh, para Pialat e, desconfio, para muitos outros, é que se torna a verdadeira idealização. Um homem que vive para sua arte, uma arte que nem é mostrada em evidência no filme (seu auto-retrato, a obra mais famosa que vemos na projeção, é vista em um canto), uma arte que para ele pouco importa se será vendida, jogada fora, trocada por um prato de comida. O Van Gogh de Pialat vivia para viver, pintar, e ansiar pela morte.

E suas pinturas que mais sobrevivem nos dias de hoje, com suas cores vibrantes e pinceladas extravagantes, são preteridas por retratos sem vida do que estava ao seu redor. Não importa a ele se as pessoas gostam de suas pinturas - e na maior parte elas não gostam (e o filme encontra muitos jeitos de comunicar isso) -, o que importa é pintar.

9

Anterior
Anterior

Crítica | Noites Brancas (1957)

Próximo
Próximo

Crítica | Everybody Wants Some