Crítica | Noites Brancas (1957)

Toda história de amor é também uma história de fantasma.

Em texto sobre Ugetsu (1953), obra prima milagrosa de Kenji Mizoguchi, Natália Reis destrincha essa que é uma das minhas frases favoritas da crítica brasileira contemporânea. Amar é idealizar, e idealizar é aceitar que o ideal não existe.

E Luchino Visconti divide mais do que assombrações com Mizoguchi. Sendo um dos poucos cineastas capazes de falar sua língua, seus filmes são calcados na mise-en-scène, no desencadeamento de todos os elementos, em sua aparente sinergia que disfarça o mais completo caos de um mundo tangível pelo olhar. Em ambos os diretores (e em outros poucos), a cena fala em sua modulação.

Adaptado de um conto de Dostoiévski, Noites Brancas em seu belo título fala de poucas noites, nas quais um charmoso Marcello Mastroianni, tentando se passar por um homem qualquer, se encanta por uma adorável Maria Schell, em sua melhor interpretação de Giulietta Masina. Caminhando pela cidade portuária de Livorno, ele avista a jovem (e loura, Hitchcock vem logo a seguir) chorando sobre uma ponte, acima de um canal. O ato, em si, já exclama potencial cinematográfico, mas a maneira como Visconti idealiza a cena é que a constitui. Caminhando por ruas que, filmadas em profundidade de campo e com direito a todo relevo de suas muitas camadas, parecem configurar um pequeno mundo construído justamente para o filme, Mastroianni passa por muitas criaturas, e o vemos a distância como que em um videogame onde a tela nos permite escolher de antemão o que vamos explorar.

Tal qual uma pintura barroca, os filmes de Visconti que vi até agora - em especial os preto e branco - dividem essa característica constituinte, de cenas com diversos elementos que se potencializam entre si: enquanto uma conversa ocorre em primeiro plano, pessoas caminham ao fundo dividindo o mesmo foco. Para a narrativa, elas pouco importam. Para o filme, elas são cruciais. O que me fez pensar sobre a importância dos figurantes, sobre a natureza coletiva do Cinema como arte, e como essa coletividade deve ser regida por aquele que dá nome ao filme.

E Visconti, diretor de origem aristocrática e educação privilegiada, é também um diretor de controle rigoroso sobre o olhar de seu filme: tanto sobre o que veem os seus personagens, como o olhar que o próprio filme expressa. Se Senso (1954) é um filme que denota os jogos de desejo e poder que se misturam de maneira borrada entre o amor e a política, Noites Brancas é primeiramente um romance, mas que toca em diferentes temas e ideias a todo momento, tal qual suas cenas tocam em diferentes pontos de atenção enquanto o casal principal se conhece. Mais ao fim do filme, na viagem de balsa feita pelos dois vemos, de maneira periférica, moradores de rua ao lado do rio: a subjugação da existência humana ao lado do mais delirante dos momentos, ou estariam os dois apenas fazendo o possível com o que tem?

Em Visconti, não é necessariamente a visão (tudo, como discorrido até aqui, é visto) que permite a nós acessar estes elementos. Em outros diretores é o plano/contraplano que dá à imagem a centralidade que a permite se materializar. Com Visconti, é a tangência. De novo, quase como que em um videogame, Mastroianni entra em contato com essas criaturas que então parecem sair das sombras (o uso de chiaroscuro é algo), se materializando para o mundo significativo do filme.

Existem infinitas maneiras de se filmar uma conversa, mas é filmando as não conversas que Visconti constrói a relação de Mastroianni com aquele cenário expansivo. Com o que fica à margem (o plano dos moradores de rua, novamente, um atestado político), e o que nunca se torna de fato acessível (as mulheres pelo vidro e depois pelo desencontro, as almas que vemos de passagem, ou dentro de estabelecimentos, portas e janelas). Em uma cena sublime, logo após um plano que preenche a tela com os rostos colados dos protagonistas, uma jovem abre a porta para se refrescar enquanto olha a noite, e os dois são enquadrados pela porta, em uma janela que, vista de longe, revelaria apenas suas silhuetas.

Em outro momento, a porta batendo nos permite hora ver, hora não ver. Em outros tantos, Marcelo caminha por um longo espaço, até que vê Maria no extracampo, e o corte nos leva à continuidade espacial, a ser explorada em um terceiro plano onde os dois se encontram. Espaços virtuais, quiçá fantasmagóricos, até se tornarem tangíveis. E a grande tragédia do filme de Visconti, e também onde jaz sua impiedosa beleza, é que embora seja possível visualizar o que está fora de tela, o que está no extracampo, logo fica claro que é impossível tocar o que está dentro da tela, no campo.

Assim, quando na cena da dança a câmera se aproxima e a sobreposição dos rostos colados cria calor em um filme sobre o inverno, somos brevemente enganados: "isso é como caminhar", diz ela, se entregando a uma possibilidade real, tangível. Mas logo tudo se esvai quando o ideal, o intangível, o fantasma, reaparece.

E aí vamos de Mizoguchi à Hitchcock: se o filme já possuía enquadramentos iconográficos, já fragmentava o espaço por espelhos, e já se calcava no mito da origem da pintura, é nos momentos finais que percebemos estar diante de uma verdadeira história de fantasma.

Mastroianni olha novamente para o extracampo, e como uma aparição escondida pela trêmula iluminação, enxerga novamente Maria. No plano seguinte, os dois se encontram em cena, e se posicionam frente a uma parede, onde suas sombras dançam, se sobrepõem e, tal como ambos um para o outro, aparecem e desaparecem.

Os dois saem caminhando juntos, mas mais uma vez o extracampo revela algo que, se antes acabava em junção, agora provoca separação. O fantasma volta ao mundo dos vivos, enquanto o protagonista vira apenas mais um elemento do cenário, em uma inversão em paralipse, destrutiva como uma enchente que tornaria submersas e inúteis todas aquelas pontes. Mastroianni ao fundo, uma paisagem de um futuro inexistente, que então tumba no mais repetitivo e cíclico presente.

Voltamos, então, ao passado, ao começo do filme, onde ele não mais é do que apenas uma alma vagando. Um fantasma, desaparecendo nas noites brancas.

10

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