Crítica | Ex-Machina

Por milhares de anos humanos cultuaram, brindaram e até mataram por Deuses que julgavam existir e que estariam olhando por nós em cada pequena atitude de nossas ainda menores vidas com significados e importâncias tão irrisórios para a continuação do universo que centenas de filósofos e cientistas cada vez mais estudam se o niilismo não seria, na verdade, uma forma mais inteligente de entender tudo.

Porém, nenhuma das práticas envolvendo tanto a religião, quanto a ciência, parece ser tão perigosa quanto a combinação de ambas que permite ao Homem brincar de Deus. Por isso, quando Caleb se refere, maravilhado, à possibilidade à ele apresentada por Nathan como a história de Deuses e não de Homens, é entendível que aquele homem tão inteligente e implacável a confunda ainda mais a seu favor.

“Você se lembra quando disse, no outro dia, que eu era um Deus?”

“Ex-Machina”, estreia do bem sucedido escritor e roteirista Alex Garland na direção de um longa-metragem, é uma das ficções científicas mais realistas e viscerais de uma década onde a grande maioria achou que, graças às proezas técnicas atualmente presentes no cinema, conseguiriam respostas sobre si próprios indo para além do aqui e agora, seja este além o espaço sideral (“Interestelar”, “Gravidade”) ou o futuro (“Looper”, “O Expresso do Amanhã”). E por isso este filme, que passou quase desapercebido durante sua modesta corrida por cinemas e festivais até desbancar “Star Wars” no Oscar de Melhores Efeitos Especiais, figura, de certa forma, como um parente não tão distante do excepcional “Ela”, de Spike Jonze, que consegue sintetizar o futuro ao apresentar uma boa e velha história de amor, por mais inusitada que esta seja.

E, nesse sentido, “Ex-Machina” não é tão diferente, pois apesar de trazer abertamente sua questão primordial para a tela ao tratar o relacionamento de Caleb e Ava como um teste de Turing (o qual ele é selecionado para participar após uma competição na empresa que trabalha, uma espécie de Google criada por Nathan), o que vemos é um sútil e potente romance surgindo entre dois seres que não sabem, dentro de suas próprias escalas, o quão diferentes são. Separados por uma tela de vidro, sua relação é tão física como a de Theodore com Samantha, com ambos se limitando a conversas triviais que ditam o início de qualquer relacionamento. Aí entram as grandes habilidades de Garland em conferir humanidade à seus personagens, revelando suas preferências e sentimentos por meio de diálogos contidos na medida certa, devido à estranha natureza de sua relação, mas reveladores sempre que a intimidade dos dois dá passos maiores que as pernas.

Justamente por nos fazer simpatizar tanto com esta dupla que Garland consegue, ao mudar o tom da narrativa, nos colocar dentro da claustrofobia e do crescente caos que se instá-la quando a verdadeira natureza de “Ex-Machina” é revelada. Este não é um romance, por mais que se utilize dele da melhor forma, mas sim um suspense enervante, estrategicamente ambientado em uma fortaleza escondida em meio à belas, inóspitas e geladas paisagens - estrategicamente mostradas em toda sua magnitude pela cinematografia - onde apenas um dos quatro personagens apresentados parece não ter mais nada a oferecer do que sua desajeitada postura e envergonhado sorriso.

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Domnhall Gleeson, inclusive, compõe Caleb como um jovem que, apesar de funcionar quase como uma espécie de representação do espectador na tela, possui desejos, sonhos e dúvidas próprias, nunca fadado à inocência que é convidado a sugerir pelo roteiro. Já Oscar Isaac, impecável como sempre e um verdadeiro camaleão, desaparece por trás da grande barba e robusta transformação de corpo que passou, sempre sugerindo uma camaradagem maior do que julgamos ser certo acreditar, e repare como Garland raramente nos mostra seus olhos de perto, criando uma distância clara entre espectador e personagem, justamente para tornar tão inquietante a performance magnética do ator (chegando ao ápice na hilária cena de dança que nos faz questionar, definitivamente, quem é aquela pessoa). E se Sonoya Mizuno tem um papel diminuto e subestimado na narrativa, muito se deve ao fato de todos os olhos dedicados à feminilidade serem postos na Ava de Alicia Vikander, vencedora do Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel errado. Desde a impecável composição de seu corpo artificial, à bela trilha sonora e doce vestuário da mesma, tudo sobre esta personagem demanda a mais crucial das atenções, pois, novamente, é como se fossemos encarregados da mesma tarefa de Caleb: descobrir se aquele androide é, ou não, digno de humanidade.

*venho do futuro para pontuar que a trilha de Ava tem elementos de “Blade Runner”, a humanizando em meio aos sons sintéticos que comandam a maior parte da narrativa.*

Em sinergia com o talento de seu elenco, Garland consegue flutuar com naturalidade entre as relações de cada um destes personagens, sem deixar de evidenciar o contraste de peso da narrativa, transformando momentos de aparente leveza em apenas preparações para mais uma guerra psicológica que se instá-la com frequência nas mentes de cada um deles e que induzem, pouco a pouco, a mesma paranoia nos espectadores, sentimento reforçdo pela trilha sonora sintética, fria, propositalmente robótica. Em certo momento, Caleb começa a questionar a própria existência e, quando aquele jovem tão inofensivo e cheio de inocência parece estar entregue às próprias desconfianças, é inevitável não cogitar repetir a mesma atitude extrema que ele. Nesse ponto, “Ex-Machina” se aproxima de dois dos maiores clássicos de seu gênero, pois, assim como “2001: Uma Odisseia no Espaço” e “Blade Runner”, o foco narrativo de todo o filme reside na mais simples pergunta relacionada à inteligência artificial, o que é ser humano? E por se passar em uma situação consideravelmente mais “possível” que as obras primas de Kubrick e Ridley Scott, seu grau de relação com a verdadeira história dos homens se torna ainda maior.

É uma pena, então, que, diferentemente destes outros dois filmes, o final de “Ex-Machina” deixe um tanto a desejar, pois, por mais que tenha revelações chocantes e termine oferecendo ainda mais perguntas que respostas, parece não ter ido tão longe quanto deveria para honrar a profundidade que seu roteiro chegou. Para coroar um filme tão persuasivo, que propositalmente te induz à dúvidas e questionamentos, a viagem deste final deveria ser mais intensa, deixando a última impressão martelar tanto a sua cabeça como as várias no meio da produção. Ainda assim, é um filme que flerta com a perfeição em diversos momentos e deve ser lembrado por anos a seguir. É uma ficção científica como a mesma deveria ser feita, sobre ideias, sobre medos e anseios, sobre a inevitável marcha da humanidade para seu catastrófico final, chegando tão perto de tentar responder esta, que é uma de suas questões mais debatidas, que é como se, propositalmente, guardasse a resposta para si, por trás do sugestivo sorriso de Monalisa de sua personagem principal.

“Ex-Machina” é tão inteligente que me faz quase odiá-lo.

9.3

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