Crítica | Califórnia

Um dos gêneros mais gratificantes dos anos 2010 foi justamente o chamado Coming of Age, que ao entregar algumas das obras mais belas de toda a década (“Boyhood”, “Moonlight”, “Lady Bird”, entre outros) parece ter atingido seu pico de qualidade justamente nos dias de hoje, mesmo com exemplares tão antigos como, por exemplo, “Bambi” de 1942.

E por que isso?

Bem, longe de querer fazer um estudo que seria digno de tese acadêmica, não me seguro em opinar sobre este que se tornou um de meus gêneros favoritos, pois julgo bem possível que o principal motivo de seu auge criativo seja que ele reflete os tempos que vivemos, onde, com tanto conhecimento a nossa disposição, somos capazes de perceber o quão pequena e frívola a vida pode ser. É interessante, portanto, que a diretora, Marina Person, transforme este “Califórnia” em uma síntese de sua própria adolescência nos anos 80, talvez a última geração de jovens antes do advento da internet. Pois se à Clara sobram desejos e sonhos banhados pela ingenuidade, lhe falta toda a complexa mistura de depressão e ansiedade experimentada pelos personagens principais dos filmes que citei acima.

Para ela, a AIDS é uma doença apenas passada entre casais homossexuais, pois é o que todos dizem. Para ela, a Califórnia é o lugar mais mágico do mundo, pois é o que seu tio à diz. Para ela, o personagem interpretado por Caio Horowicz é uma espécie de gay psicopata, pois é o que seus colegas dizem. Mas isto não a torna menos inteligente, mas sim um exemplar de sua época, assim como as amigas que acreditam que a primeira vez não dói se feita da forma certa (curioso que elas tampouco se preocupam com a “forma certa”). Eram épocas diferentes, onde se penduravam posteres de artistas nas paredes (recurso este usado até em demasia), onde pouco se sabia sobre tudo.

Nesse cenário consideravelmente diferente do de hoje, Clara Gallo compõe sua Estela como uma jovem maravilhosa que, dentro de todas suas inseguranças e dúvidas sobre a vida, se mostra forte e com ideias próprias por mais que se deixe influenciar diversas vezes pelo ambiente a sua volta, o que não a torna uma pessoa menos boa, mas sim mais humana. É uma pena, portanto, que o restante do elenco juvenil não a acompanhe de perto, mesmo que tenham se entregado à ideia do longa. Giovanni Gallo, por exemplo, pronuncia todas suas falas com artificialidade por mais que consiga dar vida à um tipo que todos conhecemos e suas amigas, interpretadas por Letícia Fagnani e Livia Gijón, não conseguem fugir das caricaturas à elas entregues pelo roteiro. Já Horowicz compõe JM com uma ironia sombria frequentemente engraçada e eficaz, figurando como um jovem tão complexo e interessante como Estela, o que torna a química dos dois atores (extremamente profissionais ao realizar cenas tão ardentes em uma idade tão jovem) divertida e justificável.

Porém, é Caio Blat, em mais uma excelente escolha de papel, que rouba a cena, dando vida ao tio de Estela que, propositalmente, é mostrado como um jovem adulto cheio de vida, mesmo que esta mesma a esteja o deixando. Person é extremamente eficaz em dosar a relação dele com a sobrinha e com o lugar que dá nome ao filme, se mostrando genial na cena onde sua sexualidade é revelada e, mais a frente, em um bem orquestrado salto de tempo, onde sua saúde já está deteriorada. Ao fazer isso, ela evita as óbvias cenas de confronto entre ambos e opta por focar na relação de amor e compartilhamento que nutrem um pelo outro, fazendo com que Estela questione os sentimentos conflitantes quanto ao tio com JM e também pintando com tons alegóricos esta Califórnia, tão capaz de dar e tirar (tanto a vida como a fama).

Com uma excelente e evocativa trilha sonora (e um excepcionalmente bem colocado cover de “De Repente, Califórnia”) e belíssimas composições visuais, “Califórnia” acaba escorregando apenas em alguns pequenos momentos, como na superficialidade da narração inicial de Estela, na falta de naturalidade de seu elenco de apoio e ao escolher um final que foca menos em Estela e mais em seu romance que, apesar de bonito e natural, nunca fora o foco principal da narrativa. E, apesar de não se aproximar de seus melhores primos (alguns feitos, inclusive, na Califórnia), este é mais um belo exemplar deste gênero tão poderoso no século 21.

se estela vai ou não para a califórnia, não sabemos, mas raramente um título foi tão bem escolhido.

8.4

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