Crítica | Janelle Monáe - Dirty Computer

Janelle Monáe,

em grande parte por escolha própria, não está entre as celebridades mais midiatizadas da indústria musical atual - nem produz música que esteja entre as mais acessíveis dessa indústria. Sua carreira artística foi acompanhada por uma trajetória empreendedora na Wondaland Arts Society, selo no qual investe e trabalha até hoje e pelo qual lançou seu primeiro álbum, o demo "The Audition", no longínquo ano de 2003.

De lá pra cá, a carreira de Monáe embarcou numa ascendente brilhante: em 2007 lançou o narrativamente rico "Metropolis EP", que serviu de alicerce para seu primeiro álbum, uma das obras-primas do R&B contemporâneo, o épico "The Archandroid", de 2010, e para seu ótimo sucessor em 2013, "The Electric Lady"; trabalhou diretamente com Prince; e ainda atuou em dois grandes filmes em 2016, "Estrelas Além do Tempo" e o vencedor do Oscar de Melhor Filme "Moonlight".

Janelle Monae em Frame de "Estrelas Além do Tempo"
Janelle Monae em Frame de Moonlight

Todos esses projetos e realizações acabaram fazendo com que o lançamento do terceiro álbum da cantora demorasse mais tempo do que o esperado: foram cinco anos entre "The Electric Lady" e "Dirty Computer", em abril de 2018. Tempo suficiente para gerar expectativa e, aparentemente, tempo suficiente para produzir uma obra-prima, ou algo muito próximo disso.

A cantora do Kansas disse em mais de uma situação que o conceito desse álbum já existe e estava na mesa faz uma década, mas que ela, mais de uma vez, adiou o projeto.

“I knew I needed to make this album, and I put it off and put it off because the subject is Janelle Monáe.”
— Janelle Monáe para NYT Magazine

Quem acompanha há mais tempo e com mais atenção o trabalho de Janelle pode imaginar porque isso é, de certa forma, uma ruptura na trajetória da artista: até "Dirty Computer", todos os seus discos são ambientados nos anos 2700 num universo inspirado na ficção científica "Metropolis". Nesses trabalhos, a cantora interpreta Cindi Mayweather, uma androide que é caçada por ser diferente e por se apaixonar por um humano.

O alter-ego de Monáe funcionou como base para a construção de um rico universo narrativo, conceitual e musical, universo que a apresentou como uma tremenda força criativa. Contudo, esse alter-ego também funcionava como escudo para a cantora. Era mais fácil se posicionar frente ao showbusiness como uma personagem. Tal escolha foi confortável para a cantora por bastante tempo, mas, conforme ela cita em entrevista, o falecimento do amigo, mentor e parceiro Prince fez com que Monáe revisse a opção por se manter atrás de Cindi Mayweather.

I couldn’t ‘fake’ being vulnerable. In terms of how I will be remembered, I have anxiety around that, like the whole concept about what I’ll be remembered for.
— Janelle Monáe para NYT Magazine

Em seu terceiro álbum, Janelle Monáe se despe de sua persona e fala por si, sem máscaras, pela primeira vez.

"Dirty Computer", ou "Computador Indecente", faz uso de analogias tecnológicas, algo que Janelle já domina e as aplica a uma narrativa pessoal, que não deixa de ser grandiosa, sobre sexualidade, auto-descoberta e política.

No álbum visual (ou emotion picture, como chamado pela artista), linkado abaixo, ainda é perfeitamente possível conectar este trabalho com o universo de seus álbuns anteriores. A android que está sendo "limpa" (o "dirty" também significa sujo, como se quem fosse diferente estivesse com vírus e precisasse ser limpo) é a 57821, número de Cindi Mayweather, mas aqui é chamada de "Jane", e as memórias dela que são exibidas parecem estar muito mais relacionadas com Janelle do que com seu alter-ego.

Mas afinal, como essa nova fase se reflete na música de Monáe em "Dirty Computer"?

Resumidamente, da seguinte forma: Janelle possui agora não um, mas dois discos geniais em sua discografia.

"Dirty Computer" é um disco recheado de hinos: há sexo, há política, há empoderamento, há reflexão. E o que amarra essas 14 faixas com perfeição é o talento de Janelle como compositora, a produção e a atmosfera passivo-agressiva, mas otimista, que essa viagem apresenta.

Esse é o trabalho mais acessível e com maior unidade de Janelle até agora.

O disco é, acima de tudo, divertido e libertador. É palpável o quão livre e empoderada a cantora está sobre sua vida, sua arte, sua sexualidade. Faixas mais divertidas como "Make The Bus" ou "Q.U.E.E.N", que eram exceções em seus respectivos álbuns, nos quais Cindi Mayweather estava "muito ocupada liderando uma revolução de robôs" são a maioria em "Dirty Computer". Aqui, quem tem a palavra é Janelle Monáe, uma artista sem medo de dizer à América de 2018 o que ela precisa ouvir.

A faixa-título dá o tom para o disco. Analogias na letra, bela performance vocal, a excelente e surpreendente aparição de Brian Wilson nos vocais preparam o terreno para o pontapé que impulsiona o resto do álbum, a grandiosa "Crazy, Classic, Life". Mesmo não sendo nada revolucionária, é muito difícil não se render à vibe da canção. Da excelente linha de baixo ao hínico grito no "life" do último refrão, passando pela citação de Martin Luther King e pelo ótimo verso de rap no final, "Crazy, Classic, Life" faz o dever de casa e introduz com classe uma das melhores faixas do LP: "Take A Byte".

Diversas músicas abordam paixão, sensualidade e sexualidade em "Dirty Computer", mas duas em especial realmente tem potencial pra mexer com os seus sentidos: "Take A Byte" é uma delas. A fusão de funk, disco e future soul é perfeita, o groove é irresistível. A sensualidade no vocal de Janelle faz com que a canção nos transmita para um quarto apertado do qual não se quer sair e o misto de sintetizador e piano sustenta a elegância que impede que a atmosfera fique banalmente vulgar. Além disso, é interessante perceber as notas conceituais na letra, como a referência ao disco de 2013 do Daft Punk (e à própria efemeridade do tesão o comparando à memória RAM) e a estilização da palavra "bite",  ou mordida, em português, como "byte", que se refere à medida de dados digitais.

My random access memory wants you to come again
No, don't say goodbye (don't say goodbye)

A americana já acostumou o público a discos com um início arrebatador,  e felizmente, "Dirty Computer" não é exceção. O "primeiro ato" é fechado com maestria por duas faixas excelentes, "Screwed" e "Django Jane".

Simplificando: se "Screwed" tiver a promoção que merece, tem potencial para ser um dos hits do ano.

Refrescante, dançante, um riff de guitarra sensacional, descontraída, um ótimo verso de rap e uma ambiguidade por toda a letra, que usa do sexo como metáfora para política, o que fica evidente na citação de Oscar Wilde (ou House of Cards, se formos nos ater precisamente à frase).

Everything is sex, except sex, which is power
You know power, is just sex
Now ask yourself who's screwing you

A influência de Cindy Lauper e Madonna também pode ser percebida na faixa que, com similaridade ao trabalho feito pelas irmãs do HAIM, recria com inventividade e frescor a sonoridade dos anos 80. "Screwed" é implacável e uma das melhores faixas do álbum.

"Django Jane", por sua vez, ganha destaque na tracklist e na carreira de Janelle por ser sua primeira faixa full-rap - não há sequer um hook. Isso poderia ser um problema, não fosse a produção que equilibra bons samples, uma batida vibrante, a elegância das cordas e, é claro, a entrega e o flow de Monáe, que nunca esteve tão bom.

"Django Jane" não rima a toa com "Django Unchained": é um grito de guerra de poder feminino, em especial para a mulher negra ocidental.

Remember when they used to say I look too mannish
Black girl magic, y'all can't stand it
Y'all can't ban it, made out like a bandit
They been trying hard just to make us all vanish
I suggest they put a flag on a whole 'nother planet

"Django Jane" é apenas o maior dos exemplos da maturidade em que Janelle se encontra como rapper: a cantora imprime qualidade às rimas, ao flow e não se esconde na hora de fazer críticas sociais e se posicionar.

Os versos de rap de Monáe em "Dirty Computer" são tão bons que levam o ouvinte a refletir (e criar expectativas) sobre quão bom poderia ser um álbum de rap da cantora, que já brilhara como rapper antes em faixas como "Q.U.E.E.N.", "Ghetto Woman" e "Electric Lady".

A segunda metade do disco fica com alguns dos cortes menos brilhantes da tracklists, apesar de abrigar o maior hit do álbum e boas surpresas. "PYNK" conta com a perceptível participação de Grimes, principalmente no que concerne à produção e é uma ótima, divertida música (possivelmente a mais provocativa e com melhor videoclipe de "Dirty Computer"). "Don't Judge Me" é provavelmente o corte mais introspectivo e pessoal do disco, abordando a relação da cantora com seus fãs e a mídia. Ótima letra, uma boa canção, ainda que destoe bastante do resto do disco por ser bem mais desacelerada; "I Like That" é mais um momento de libertação, com vocais poderosos e melodia contagiante. A produção é menos inventiva, utilizando uma batida trap que soa pobre perto da instrumentação do disco, mas essa é provavelmente uma opção feita para não desperdiçar a força de banger que a faixa tem. Mas voltemos aos destaques positivos: quão bom é o maior single do álbum?

"Take A Byte" é uma das duas faixas extremamente sensuais do disco,

a segunda, é "Make Me Feel".

Todos os elementos trazidos por Monáe à faixa somam à tensão sexual que a artista tenta exprimir, e ela o faz com excelência. O ritmo é super dançante, a performance de Janelle incrível e a produção minimalista enfatiza cada camada da canção, dando ao pré-refrão e refrão uma força intangível. Sim, a faixa lembra muito "Kiss", do Prince, mas nem de longe de maneira negativa. Não soa nem um pouco como plágio, soa como irmã: não poderia ser diferente, na verdade, uma vez que Prince esteve envolvido na produção do álbum.

Ainda temos a faixa que conta com a participação de Pharrel Williams, "I've Got the Juice". Provavelmente, o corte do disco que mais cresce a medida que se ouve: de primeira, pode soar levemente repetitiva ou simples, mas não demora para que o clima tropical e o tom brincalhão e dirty ganhe seus pés.

Assim como épicas aberturas, os álbuns de Janelle Monáe também costumam ter fechamentos grandiosos e otimistas. Em "Dirty Computer", não é diferente.

O fechamento do disco não poderia ser melhor. Temos o tocante interlúdio espiritual "Stevie's Dream", que traz a participação de Stevie Wonder e abre para a emocionante "So Afraid". Aqui, Janelle nos recepciona com os pés no chão, com um início cru, guitarra e voz, e então vai crescendo até se tornar uma épica fusão de neosoul, opera-rock e R&B. Talvez essa seja a mais bela faixa do álbum. Ao mesmo tempo que os medos de Janelle parecem ser relacionados a temas macro, é perceptível quanto eles tocam os aspectos micro, a intimidade da cantora e, por que não, de todos nós.

Por fim, "Americans" encerra o álbum de maneira perfeita. Assim como em "Crazy, Classic, Life" e "Make Me Feel", a influência e colaboração de Prince é explícita, mas aqui, talvez com mais veemência. A canção se assemelha em estrutura, produção e energia ao clássico "Let's Go Crazy" de 1984, porém tem sua própria identidade e é criativa suficiente para não soar nostálgica demais. Além disso, há a diferença temática. A letra bate sem medo em temas como machismo, racismo, xenofobia e homofobia, para citar alguns. E o faz de maneira inteligentíssima -  ora Janelle vocaliza as causas pela qual luta com objetividade, ora ironiza o outro lado da sociedade americana. O que torna a interpretação ainda mais interessante é a maneira com a qual a compositora se apropria de falas comuns desses cidadãos conservadores para empoderar sua causa, como na citação abaixo.

I pledge allegiance to the flag
Learned the words from my mom and dad
Cross my heart and I hope to die
With a big old piece of American pie

Love me baby, love me for who I am
Fallen angels singing, "Clap your hands"
Don't try to take my country, I will defend my land
I'm not crazy, baby, naw, I'm American

"Americans" é uma carta de amor aos Estados Unidos num momento em que nunca foi tão difícil escrever uma.

E com uma provocação, ela encerra o disco: "please sign your name on the dotted line". Há duas interpretações, assine voluntariamente ou assine coagido, mas a opção é única: assine. Essa linha poderia estar ligada a abraçarmos esse novo momento de Janelle Monáe como artista, entretanto, dado o contexto que "Americans" impõe, é complicado não conectarmos a frase à política.

E essa é a força do encerramento do disco nessa frase. Cinco anos após "The Electric Lady", os Estados Unidos, o mundo e Janelle Monáe são outros. O Salão Oval se despediu de um presidente transformador para receber um radical de sanidade duvidosa. As melhoras sociais que continuamos esperando continuam sendo adiadas mundo afora. Perdemos Bowie. Perdemos Prince.

Janelle demonstra ter tido muita clareza sobre tudo isso, reconhecendo que era hora de chamar a responsabilidade para si. E o fez com maestria. Esse é um disco que quer expandir, não segmentar, e que para isso, usa de elementos de cada peça anterior na discografia de Monáe - tal como Kendrick Lamar fez em DAMN., por exemplo.

"Dirty Computer" não é a obra mais narrativa nem mais épica de Janelle Monáe, mas ainda é conceitual e é sua obra mais acessível. O grande mérito reside no fato de que esse conceito é uma porta aberta, não um livro fechado: o que é só é possível graças a abertura de Monáe. E por esse movimento, que não deve ter sido fácil, só temos a agradecer.

8,9


EM BREVE,

na nova seção do Outra Hora, teremos uma matéria indo a fundo no conceito do universo expandido da obra de Janelle Monáe, tentando desvendar como os seus álbuns se completam.

 
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