Crítica | Deserto Rosso
RESISTINDO AO TEMPO
Filme de Antonioni mostra sintomas da modernidade na busca pelo belo
Entre os anos de 1508 e 1512, Michelangelo pintava o teto da Capela Cistina. Então aos 33 anos, era apenas mais uma de suas obras primas - Pietá e David foram completados anos antes, por exemplo -, mas também uma constatação indiscutível.
Não importa quem viesse depois, Michelangelo foi só um.
O que torna a batalha de Antonioni inglória. Mesmo sendo um dos diretores mais aclamados da história graças a sua importância para o Cinema Moderno, seu nome jamais ofuscaria o daquele que figura entre os maiores artistas da história, 400 anos antes de o Cinema sequer existir.
Não que isso importe de qualquer coisa, mas a impressão é que entre os Fellinis, Rosselinis e Argentos, Antonioni acabou ficando um pouco nas sombras.
Ou na neblina provocada pelas fábricas que rodeiam o deserto cinzento que é Deserto Rosso. Neblina que acaba se tornando simbólica tanto de seu Cinema como de sua reputação: enquanto para apreciar De Sica é necessário apenas um coração vibrante, para se relacionar com Antonioni é necessário ter ao menos um tanto de determinação intelectual para ver pela fumaça. Pois por mais emocionalmente exaustivos que sejam seus filmes, é no labirinto mental que proporcionam que se encontra um dos, se não o maior gênio do Cinema Italiano.
A LENTA MARCHA DO TEMPO
Certamente Fellini é mais atrativo com seu existencialismo aplicado nos luxos de uma vida cinematográfica, e Argento conversa com as massas ao mesmo tempo que as educa (na maioria das vezes, sem que saibam), mas há algo em Antonioni que me faz contrariar minhas próprias tendencias como cinéfilo: por mais que consiga apreciar um Apichatpong ou Tarkovsky, sempre vou preferir um Kurosawa (qualquer dos dois) ou um Hitchcock. Porém, desde A Noite, passando por A Aventura, Blow Up e, principalmente, Profissão: Repórter, percebi que Antonioni me desafiou como poucos diretores - e certamente apenas Edward Yang me enfeitiça tanto quando se fala em Slow Cinema.
É curioso porque, comparado ao diretor Taiwanês, o estilo do Italiano é consideravelmente mais simples de se entender. Como disse Orson Welles: Antonioni filma uma pessoa caminhando por tempo demais, e depois a pessoa sai e ficamos vendo o caminho vazio. Mas embora o diretor de Cidadão Kane fale em tom de desdém, entendo isso como uma das mais belas sínteses do apelo de um filme como esse.
Ao menos para Deserto Rosso, talvez o mais mundano e prosaico de todos os que assisti do diretor. Enquanto na Trilogia da Modernidade há uma liberdade na edição e/ou mise-en-scène que se envolve diretamente com o peso de cada frame, e em Blow Up o Cinema em si é desmembrado, aqui é como se Antonioni quase se entregasse às tendências neo-realistas que pontuaram as décadas anteriores. Porém, ao invés dos escombros deixados pela guerra, o que está em ruínas é o senso de identidade e sociedade que se construiu em cima de estruturas tão abaladas. Em sua primeira cena, a fumaça, a chaminé, a fábrica, em três planos que estabelecem com maior clareza e potência possível o que ele passa duas horas examinando e investigando.
De vermelho, apenas as estruturas alienígenas que servem para ouvir o espaço… e os cabelos quase ruivos de Monica Vitti que, vestida de cores graves e vibrantes, contrasta com os arredores acinzentados que parecem engolir tudo, não muito diferente do branco em Vidas Secas. Vitti, o único traço de liberdade moderna em um mundo preso à suas novas tendências, mas fadado a repetir erros do passado. A tecnologia não como solução, mas como substituição do industrial que havia colapsado pouco mais de 20 anos antes.
Ao filmá-la lutando consigo mesma em frente a este mundo, segurado por prédios grandes e vazios (tanto de vida como de arte), Antonioni filma a luta interna de alguém em crise com o lento, mas avassalador avanço do tempo - não muito diferente do que faria Yang com seu A História de Taipei. Outros se adequam, se divertem, e recorrem ao hedonismo como maneira de encontrar beleza naquele deserto. Ela não. Os avanços dos homens proporcionam cenas desconfortáveis, os diálogos frívolos não comunicam nada se não uma mera ferramenta social de tentar viabilizar situações desagradáveis - lembrando um pouco do contemporâneo Luis Buñuel, que certamente expandiria cenas como aquela quase-suruba na cabana com seu trabalho nos anos 70. A edição, espacialmente desconexa, e a profundidade de campo em lugares fechados, pontuada por sombras e meias luzes, criam uma atmosfera que flerta com o que Kiyoshi Kurosawa faria anos depois com Pulse, uma conexão intrínseca entre a evolução e o fim.
Assim como suas pequenas sequências como aquela que apresentava a fábrica, o longa se constitui como uma sinfonia de imagens, pontuada pelo interminável som das máquinas que não permitem fuga nem ao fechar os olhos, e com toda sua mensagem traduzida visualmente no desaparecimento daquelas pessoas em meio a fumaça - elementos que remetem ao que fez Vertov com Um Homem Com uma Câmera e Scorsese (esse, um admirador confesso) em Taxi Driver.
O impacto então, diferente daquele mais flutuante de outros de seus filmes, se dá por um esgotamento dos sentidos. As cenas nem são tão longas e definitivamente soam mais dinâmicas, mas há em todo o filme essa marcha lenta de decadência humana, com vários elementos sendo apresentados de forma frívola, rapidamente a serem descartados como substância, deixando valer apenas o tempo entre eles.
A BUSCA DO BELO
Embora volta e meia Antonioni encontre planos memoráveis, como aquele de Vitti em frente à uma casa completamente preta, Deserto Rosso busca o belo no feio, como meio de entender quem somos - ou estamos nos tornando - perante o mundo ao redor.
E assim, talvez o mais desafiador dos grandes diretores Italianos conversa com todos os cantos do mundo, fazendo da limitada e claustrofóbica amostra de vida que filma um projeto que se expande conforme é refletido.
Provavelmente o momento mais marcante seja a história contada por Vitti ao filho, de uma menina que nada em uma praia deserta e, após ver um barco misterioso passar por perto, começa a ouvir as pedras cantarem - algo que, dadas as proporções, me lembra um pouco da fuga proporcionada por Persona, mas com imagens filmadas por Rohmer. Não há qualquer resolução, ou sequer lógica narrativa, para a sequência, mas ela se conecta perfeitamente com tudo que o filme é: de acordo com o próprio Antonioni, a intenção era traduzir a poesia do mundo, de modo que até mesmo fábricas podem ser belas.
Ele entende que há, e buscou ao longo da carreira encontrar, não respostas, mas os mistérios mundanos que tornam nosso planeta algo tão fascinante. De uma paisagem idílica à opressão de estruturas metálicas, ele apenas aponta sua câmera e pacientemente espera.
Visto a resposta emocional que o filme provocou em mim, posso apenas dizer que ele consegue, como talvez ninguém, me fazer enxergar algo. Pois apesar de toda a desolação de um lugar que já nasce praticamente morto, Deserto Rosso é dos filmes mais belos que já assisti.