Crítica | A Verdadeira História de Ned Kelly
“A Verdadeira História de Ned Kelly” é uma visão autoral sobre um importante personagem australiano.
Um filme interessado no mito de um personagem fundamental na formação da imagem histórica australiana busca como principal ferramenta a dramatização de momentos chave na vida de Kelly, reforçados pela narração em off como essenciais para o processo de transformação do protagonista na lenda. Trazendo a principal marca da carreira do diretor Justin Kurzel, a narrativa é criada em tela com um processo estético apuradíssimo integrando a perspectiva interna e externa do seu protagonista e narrador: Ned Kelly. O bandoleiro muito importante no imaginário australiano se equipararia (a termos de explicação) ao que representa o Lampião na cultura brasileira, ninguém nega o fato dos dois terem cometido crimes, mas o contexto político que viveram acaba justificando perante partes das duas sociedades suas ações. Apesar dessa dimensão analítica sócio cultural “A Verdadeira História de Ned Kelly” entrega pouca substância, por culpa principalmente de um roteiro fraco às vezes abrindo mão do subtexto e trazendo elementos internos para as falas e às vezes solto da história do filme, joga contra atmosfera hiper realista desejada por Kurzel.
O filme é dividido em três atos, marcados por cards na tela, no primeiro acompanhamos a infância do personagem título, a maneira como a família é abusada pela polícia local, a violência permeia a vida rural dos Kelly, a falta de esperança de uma colônia tratada como depósito de pequenos criminosos pela coroa britânica. No primeiro ato a trama gira em torno de Ned Kelly criança, interpretado por Orlando Schwerdt, sua mãe Ellen, interpretada por Essie Davis (Babadook) e o sargento britânico O’Neill, interpretado por Charlie Hunnam (Sons of Anarchy). É no primeiro ato que Ned tem o primeiro contato com a vida de criminoso através do personagem Harry Power (também inspirado em um pistoleiro real), interpretado por Russell Crowe. O segundo ato gira em torno da vida adulta de Kelly e serve como transição entre sua infância até o famoso confronto final com a polícia, a imagem da violência e a falta de reação do protagonista à ela são muito presentes ainda, as ações e reações de Kelly sobre a morte na sua volta são definidoras para criar sua imagem, quando ele se torna o líder do grupo no filme é o momento em que faz uma síntese entre matar ou morrer, dilema que está presente desde sua infância. Ned adulto é interpretado por George MacKay (1917) e seu antagonista no segundo ato é o oficial militar Fitzpatrick, interpretado por Nicolas Hoult (X-Men, Mad Max) e além do resto do seu bando, apresenta a personagem de Mary, interpretada por Thomasin McKenzie (Jojo Rabbit), o par romântico de Kelly.
Faço questão de ressaltar o elenco estrelado porque a tensão narrativa é sustentada pelos excelentes atores e atrizes e suas interpretações essenciais, uma vez que o roteiro de “A Verdadeira História de Ned Kelly” é incapaz de tornar os personagens interessantes por si só, apresentando diálogos sem graça e, ao apostar em contar a história “por trás” do que se conhece sobre Ned Kelly, abre mão de uma linha narrativa coerente de cena a cena, o protagonista é, no mínimo, três pessoas diferentes durante o filme e por mais que essa seja a ambição artística do longa-metragem, falta unidade dramática que amarre o personagem da última cena com o da primeira, isso que o filme é narrado inteiro na primeira pessoa por Kelly. Ele não é o único personagem mal escrito, Fitzpatrick se transforma de um personagem misterioso com notas de traiçoeiro num vilão de super-herói das piores histórias dos anos 90, eu acredito que isso aconteceu em uma tentativa de aumentar o papel do personagem, fundamental na história real de Kelly, na trama do filme.
A intenção de averiguar sobre a identidade mitológica de Ned Kelly, explorando o cenário do western australiano e fazendo uso da visão autoral da representação hiper-realista é o maior mérito de “A Verdadeira História de Ned Kelly”, ao abrir mão das tentativas que ainda existem no cinema de “contar história como ela é”, Kurzel mergulha na história de exploração australiana, de como os imigrantes foram tratados e provoca, ao invocar em Ned Kelly uma alteridade entre a identidade irlandesa de sua família e nativo-australiana, baseada na experiência de viver naquele território. Assim, eu posso dizer que aprecio muito mais a moral do filme do que ele em si e acredito que o conjunto de elementos bem feitos e importantes apresentados na película não se traduziram numa boa experiência cinematográfica, sem reduzir em absoluto seu valor histórico e cultural.