Crítica | Apenas Uma Vez

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Esse é o tipo de filme que, mesmo que você assista apenas uma vez (ha), fica com você para sempre.

Tenho um certo desgosto por começar críticas com clichês como este acima, principalmente pelo fato de que as producoes que merecem a hipérbole que trazem são poucas. Mas este filme de John Carney, filmado com dinheiro do bolso, utilizando apartamentos, amigos e equipamentos pessoais para documentar uma história de amor altamente improvisada, estrelada por dois músicos que não viriam a atuar novamente, definitivamente é uma delas.

Filmado por Carney sobre uma linha tênue entre a escolha artística e a falta de orçamento, “Apenas Uma Vez” (e apesar de a tradução ser literal, o título original oferece ainda mais peso à narrativa, mas o discuto mais a frente) pende para o primeiro por conta da aura que rege o projeto. Talvez pelo fato de ser uma aventura “única” para cada um dos envolvidos, o longa é mágico o suficiente para que pudesse adornar o resto da frase que seu título inicia (“upon a time…”) e o atinge por, apesar de reconhecer a simplicidade que ostenta, jamais deixar de nos fazer acreditar que o que vemos é de suma importância na vida daqueles personagens.

Jamais nomeados, o Rapaz de Glen Hansard e a Moça de Markéta Irglová estão em momentos completamente distintos de vidas apontadas a destinos diferentes. Ele, um homem crescido que jamais abandonou os sonhos de menino e com um sorriso “bobo” no olhar, incapaz de perceber a pureza do que criara com a Moça em primeira instância. Ela, uma jovem com responsabilidades maiores do que ele jamais seria capaz de sustentar, amadurecida pelas circunstâncias, mas suficientemente encantada com o Rapaz que toca músicas conhecidas durante o dia, e autorais durante a noite. Ninguém gostaria de ouví-las, ele diz. Ela sim, ela retruca.

Donos de uma química inegável e sincera - os atores se relacionaram por um bom tempo e permanecem amigos até hoje -, a forma como Carney captura seu relacionamento é ao mesmo tempo poética e duramente realista. Filmado com luzes naturais, longas lentes que impedem os pedestres de perceberem que estão participando de um filme e com uma leve tremedeira que sugere a falta de qualquer equipamento mais avançado, a sensação é de que jamais assistimos à algo artificialmente programado para nos fazer sentir de uma maneira ou de outra, e sim a uma história que se desenrola conforme o longa avança. Mas apesar de não ser rebuscado visualmente, Carney constrói uma misé-en-scéne riquíssima, comunicando o estado de seus personagens por planos fechados que os afastam e aproximam conforme sua relação se desenvolve (a cena do piano é o exato momento onde a faísca parece ascender), e por outros mais abertos que remetem ao fato de ambos serem apenas estranhos em uma multidão de histórias que poderiam estar acontecendo ao mesmo tempo.

Porém, é a cena onde Irglová caminha e cantarola a música que renderia a ambos o Oscar de Melhor Canção Original que se prova a mais memorável. Por alguns minutos de caminhada, filmada quase inteiramente em plano sequência, ela esquece todas as dificuldades presentes em sua vida para voltar a ser uma menina, despreocupada e sonhadora.

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Metafísico ao ser único tanto na vida de seus atores como de seus personagens, “Apenas Uma Vez” ainda vence por nos convencer que há bondade na humanidade, sendo que todos os personagens que vemos mostram suas facetas mais singelas em um momento ou outro. Desde o aparentemente metódico pai do Rapaz, ao produtor que antes criticou a “banda” montada por ele, apenas para se entregar a um jogo de frisbe na praia com os esquisitões.

Poucos são os musicais que convencem que suas canções deveriam estar ali. Este, por mais simples e nada arrebatadoras que sejam suas composições, jamais deixa de precisar delas para comunicar as emoções de seus personagens, e é particularmente tocante o fato de que o Rapaz e a Moça se conscientizem que seu relacionamento jamais funcionaria em um piano “proibido” em uma sala escura, que contrasta em tudo aquele onde tocaram juntos pela primeira vez. E por mais que jamais se torne objeto central em qualquer plano, é inevitável perceber como o violão do Rapaz é sucateado pelo uso, provando que se sentimos qualquer coisa ao ouvi-lo tocar e cantar com sua voz nem sempre afinada, é porque vem, de fato, de um lugar além do material. Oferecendo um comentário igualmente lindo sobre a arte, “Apenas Uma Vez” ainda nos lembra de que ela é a única forma de passarmos sentimentos e memórias adiante, algo simbolizado, é claro, pelo presente que ele dá a ela no final da projeção - e o plano da Moça olhando pela janela traz um mar de interpretações, na maioria doloridas, de que seu cotidiano dificilmente sofrerá uma mudança tão bela e agridoce como a proporcionada por um amor que nunca aconteceu.

Como comentei antes, o título original oferece ainda outra interpretação para tudo que o casal vive em tela: o fato não apenas de ter sido uma experiência única, mas de que, no futuro, quando a contarem para alguém, ou quando apenas se lembrarem um do outro, iniciarão a história com a mesma palavra.

“Once”.

9.9

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