Clássico | O Show de Truman
Em sua cena mais famosa, Truman se despede com a mesma frase que usou, por tantos anos, para dar bom dia.
"In case I don't see ya, good afternoon, good evening and good night". Quase como um jogo de palavras com tudo que sua "vida" queria dizer, ele está vestindo o papel que lhe foi dado. Podemos ir embora, morrer, ou apenas não ligar a televisão, mas ela sempre estará lá.
"O Show de Truman" é dirigido por Peter Weir e, caso você nunca tenha assistido, não sugiro que continue lendo. De acordo com textos e críticas datados da época de seu lançamento, os meios de divulgação não fizeram um bom trabalho em esconder do público o que acontecia com Truman. A verdade é que é quase impossível indicar um filme desses sem revelar o motivo que o torna tão genial. "É uma comédia existencialista estrelando Jim Carrey.". Caso a pessoa não seja fã do ator, o que não é incomum, é meio caminho andado para um "assisto outra hora". E, apesar de que possa ser aproveitado mesmo sabendo da sua reviravolta, há algo de especial em tratá-lo como um passa tempo, sem saber do impacto que ele pode causar na forma como você entende sua vida e o próprio tempo.
Acompanhamos a história de Truman, um homem comum vivendo uma vida comum de casado até que começa a desconfiar que toda a realidade a sua volta é, na verdade, uma mentira. Ele não acha estranho as conversas do dia a dia onde as pessoas lhe fazem propaganda de marcas, ou o fato de todos na cidade serem extremamente educados, ou até mesmo a falta de familiares a sua volta. Sua vida, desde o momento em que nasceu, é um show transmitido mundialmente para uma larga audiência. O mundo onde ele vive é um grande set de filmagem, todas as pessoas na suposta cidade de Seaheaven (o mar no céu) são atores, mas ele não pode sentir falta de algo que nunca lhe pertenceu. Sua vida nunca foi sua.
É inacreditável pensar que Jim Carrey, conhecido por muitos por seus papéis extravagantes em comédias, entregaria uma das performances mais amadas por cinéfilos ao redor do mundo. Ele passa toda a inocência e ignorância de seu personagem, atos, emoções, trejeitos, é tudo superficial, o produto refletido de um mundo quase perfeito, onde tudo é uma propaganda de família de margarina. Porém é sua única inquietude que move o filme: por conta de um amor frustrado - uma atriz (Natascha McElhone) que acabou se envolvendo emocionalmente com ele e teve de ser tirada de sua "vida" - ele sempre teve a vontade de viajar, especificamente para as Ilhas Fiji, onde ela disse que o encontraria no dia em que fora removida do show.
E, caso você tenha assistido ao filme sem saber do que se trata, a descoberta gradativa de Truman sobre a realidade a sua volta vem, ao mesmo tempo, como um convite para entrar nas discussões provocadas por esta intrigante história e como uma indignação por termos sido enganados junto com ele. Jim Carrey expressa tudo isso com uma naturalidade assustadora, sua crescente vontade em descobrir o que realmente está acontecendo o faz questionar certas coisas e enxergar furos que não parecem possíveis para alguém que só viu aquele mundo. Sua determinação é admirável e é simplesmente impossível não torcer por ele.
A direção de Weir dá o tom necessário a história, sempre confortavelmente leve e acolhedor, assim como o mundo onde Truman vive e, conforme ele junta as peças do quebra-cabeça, o clima fica mais intenso, quase entrando no território de um thriller psicológico. O diretor consegue fazer com que todos seus atores funcionem em união, atuando o suficiente para desconfiarmos de cada palavra que dizem uma vez que entendemos o que está acontecendo. Nos cômicos momentos que vemos de fora da redoma, das pessoas torcendo por Truman, há um tom forte de ironia que funciona como crítica ao fanatismo e à ignorância das pessoas que vivem em torno da televisão.
Em sua última cena, as pessoas ficam extremamente felizes por Truman, mas sua primeira ação ao fim do programa é procurar outro programa.
O roteiro de Andrew Niccol é extremamente bem amarrado, deixando certos pontos sem resposta justamente para servirem de combustível para os extensos debates e estudos que se sucederam nas duas décadas após seu lançamento. Os atores deveriam ficar lá até o fim de suas vidas? Qual a televisão a que Truman assistia? Qual o grau de envolvimento "amoroso" de Laura Linney, que interpreta muito bem sua mulher no filme, com Truman? O que aconteceria com Truman após sair de sua prisão? Alie isso ao fato de que a vida de Truman possa ser vista como uma alegoria religiosa, psicológica e midiática além de traçar paralelos com obras como o livro de 1516 "Utopia" ou até mesmo o mito da caverna de Platão, e há assunto suficiente para dois séculos.
"O Show de Truman" vai além da esfera comum de um filme. Ele não foi feito para 1998, mas sim como uma previsão quase 100% correta da nossa realidade em seus anos subsequentes. Jim Carrey entregou, talvez, a performance de sua vida em um filme que marcou uma quantidade considerável delas. Se você ainda não assistiu e acha que esta crítica estragou a mágica do filme para você, não se preocupe, por incrível que pareça ele melhora a cada vez.
Em seu final, já comentado aqui, ele finalmente se encontra com seu "pai", Ed Harris, que de forma verdadeiramente emocionada tenta convencê-lo de que aquele mundo é infinitamente melhor do que qualquer coisa que ele possa encontrar fora dele. Talvez ele estivesse certo, talvez viver em um mundo onde não há violência, onde tudo funciona, onde todos são felizes seja o que consideramos o ideal. O fato é que, naquele universo, nenhum de nós viveu isso, apenas Truman e, mesmo assim, ele prefere marchar rumo ao desconhecido, em busca de liberdade. Não é um exagero dizer que é um dos melhores personagens de todos os tempos.