Crítica | TÁR
Como música
“TÁR” faz o público sentir coisas que vão além de palavras.
Dirigo por Todd Field, “TÁR” é um trabalho em torno de uma personagem que vive no mesmo mundo que nós, suas duas horas e trinta de duração se aprofundam em diversas teses partindo da protagonista Lydia Tár para analisar a sociedade que a cerca, mas no mesmo movimento que busca a sociedade volta a fazer mais reflexões sobre sua protagonista. A personagem construída por Blanchett é uma presença magnética em todas cenas e a câmera de Field certas vezes parece tentar se antecipar a ela ou filmar outra coisa, mas Lydia Tár sempre encontra o centro da tela. Acompanhamos ela no auge da sua carreira e sua inevitável queda quando é denunciada por ter relacionamentos com alunas do programa de bolsa de estudos que coordenda, ao longo do filme vemos ela se preprando para apresentar a Quinta Sinfonia de Mahler com Orquestra Filarmônica de Berlim, onde é regente. Observamos seus diálogos com subordinados, com sua esposa, com amigos em que ela demonstra sua facilidade de encantar, machucar e usar as pessoas na sua volta, fazendo as três coisas em poucos minutos. Entendemos que não há espaço na visão de mundo de Lydia Tár para nada que não seja ela mesma e sua persona artística, o que fica evidente sempre que precisa falar sobre qualquer assunto que não música clássica.
Ao final do filme, depois do clímax, a protagonista volta para sua casa de infância e assiste um vídeo do seu mentor, Leonard Bernstein no seu programa “Young People’s Concert”, nesse vídeo o famoso maestro fala sobre como música nos faz sentir diversas coisas, às vezes tão profundas que não conseguimos dar nome ao que estamos sentindo. Essa fala funciona como síntese de “TÁR”, um filme que se destaca porque faz a gente sentir um monte de coisas. Lydia é profundamente encantadora e às vezes não conseguimos deixar de sentir repulsa pela maneira que vê o mundo, às vezes o roteiro nos faz rir, geralmente as custas da protagonista como na cena em que ela não sabe o porquê da sua nova pupila e interesse celebrar o dia 8 de março. A presença de Tár é gigante a ponto de deixar pouco espaço para a simples trama escrita por Field se apresentar, mas aos poucos ganhamos os elementos necessários para desvendar os aspectos do passado dela que quer nos esconder. Os olhares dela para a nova violoncelista da sua Orquestra (que são imediatamente percebidos por sua esposa, que também é a Primeira Violinista da Orquestra). Sua assistente tenta falar com ela sobre a sua ex-discípula que no final vai causar os problemas para sua brilhante carreira, mas a protagonista responde apenas com frieza e frases prontas e já repetidas dezenas de vezes sobre a aluna.
Eu fiquei a maior parte de “TÁR” em estado de total empolgação com aquilo que estava vendo, a variação entre tensão e alívio cria expectativas imensas para cada cena, e a maneira como Field nos tira a possibilidade de ver o grande momento da apresentção da Quinta Sinfonia, nos dando apenas pequenos trechos de ensaios e mais Lydia Tár instruindo seus músicos. Qualquer música que escutamos no filme é fantástica, seja algum personagem tocando piano ou uma orquestra ensaiando, a trilha sonora nos provoca a querer sempre mais, mas sempre é interrompida pela protagonista, sempre maior, sempre mais importante que o resto de “TÁR”, não há espaço para ouvirmos sua interpretação de Mahler completa. Vemos em alguns momentos apenas como ela interage com a música, sendo compondo, regendo ou ouvindo, há dois momentos em que Blanchett fica no primeiro plano olhando para uma tela encantada com o que está vendo: na primeira assiste sua nova pupila a quem vai dar um solo na sua grande apresentação apesar da pouca experiência e a segunda é quando assiste Bernstein. A admiração que sente nos dois momentos se conecta porque de certa maneira ela se sente no centro das duas histórias, do mentor e da pupila.
No primeiro ato, o roteiro apresenta duas grandes sequências, a primeira uma longa entrevista em que Lydia conversa com um jornalista da New Yorker sobre sua carreira, sua relação com Bernstein, sua visão sobre ser uma mulher no mundo masculino da música clássica, a verborragia calma e lenta dessa sequência é o melhor jeito de entendermos quem é Lydia Tár para o mundo em que vive. Suas respostas e pedantes e até o título do seu livro “Tár por Tár” entrega sua personalidade egocêntrica e arrogante, mas Blanchett jamais deixa a gente não se sentir um pouco atraído pela maneira como pronuncia frases prontas e joga palavras em diversas línguas no meio de suas frases. A segunda sequência é uma masterclass que ela dá para uma turma de Julliard, a câmera não corta nem por uma vez enquanto assistimos a protagonista passando sua visão de mundo para um jovem aluno negro que diz não gostar de Bach por se tratar de um compositor misógino e racista. É com muita arrogância que Tár chama esse aluno de arrogante e apresenta uma série de argumentos ultra articulados sobre sua visão, para o roteiro não importa comprovar se ela está certa ou não, mas a interação manipula-intimidadora como sua protagonista interage com o mundo a sua volta. Ficamos tão encantados com Tár nessa cena que não percebemos o que uma versão editada dessa aula vai nos mostrar no terceiro ato e contribuir para as acusações que a personagem está sofrendo.
Claro, para uma pessoa egocêntrica e convencida do seu talento e importância que nem Lydia Tár nada é mais importante para ela do que o legado de outros grandes nomes da música clássica e por consequência o seu próprio. Esse parece ser o único tema que a interessa, suas conversas com amigos fluem apenas quando tocam no assunto em que discorrem sobre regentes que foram acusados de serem nazistas ou sobre compositores que se afastaram das atividades depois de receberem acusações semelhantes as que Tár receberá. Em uma cena descobrimos que ela paga um motorista particular para o regente que a antecedeu na Filarmônica de Berlim apenas para ele sentir que seu tempo a frente da Orquestra foi tão importante quanto o de qualquer um. Quando sua queda chega ela não consegue enxergar o que está acontecendo, pouco a pouco as pessoas na sua volta não a obedecem ou admiram como ela ainda faz, começa com um vídeo no twitter e uma matéria no New York Post nada particularmente importante para ela, mas em poucas cenas (e muita ação de bastidores que Field se recusa a nos mostrar) ela já não vai mais gravar o trabalho de Mahler que coroaria o grande momento da sua grande carreira.
Mais uma vez, são as sensações, a surpresa, a empolgação, o medo, o encantamento que crescem tanto enquanto a gente vê esse filme, é criar empatia por essa mulher a quem passamos duas horas conhecendo, vendo a relação de afeto com sua filha criança e destruindo seus inimigos daquele jeito que amamos ver vilões fazendo. Cate Blanchett se faz completamente magnética, se tem filmes (e cada vez mais tem) que fazem 150 minutos parecerem muito mais que qualquer história mereceria, o roteiro escrito por Todd Field poderia ter mais 5 horas de Lydia Tár que eu gostaria de assistir a cada segundo para ver essa personagem interagindo com cada desafio a sua frente, com cada pessoa a sua volta e, mais do que tudo, com ela mesma. Eu abri esse texto falando que Lydia Tár é uma das grandes personagens da história do cinema, algo que não sei quanto me agrada dizer porque a verdade é que só o tempo vai poder confirmar isso, mas quando estamos falando de “TÁR” não importa a verdade, importa apenas Lydia Tár.