Crítica | Blonde

entre o sonho e o pesadelo

Polêmico filme de Andrew Dominik é menos biografia e mais investigação


Mesmo 60 anos após sua morte, Marilyn Monroe se recusa a morrer.

Não Norma Jeane, a atriz que impersonava Marilyn dentro e fora das telas, mas a figura que se tornou uma das mais conhecidas do século 20, rivalizando com Elvis, Michael Jackson e precedendo Madonna. Não que sua influência seja exatamente sentida no Cinema pipoca de hoje, cada vez mais estéril e “feito para família”, mas é difícil imaginar alguém que não a conheça ao menos como a linda atriz loira que morreu jovem, por overdose - esse quase um clichê da vida estrelada.

Logo, o lançamento de Blonde anima ao mesmo tempo que levanta dúvidas. Seria apenas mais um infomercial congratulatório ala Bohemian Rhapsody, ou se atreveria a ser um filme como Elvis? Suas polêmicas seriam mostradas (mesmo que de maneira dosada) como em Straight Outta Compton, ou teríamos uma visão limitada e endereçada ao Oscar como Judy?

Baseado em uma biografia ficcional escrita por Joyce Carol Oates, o projeto é uma paixão de anos de Andrew Dominik que, como tantos, é fascinado por Monroe. Certamente é um nome curioso para dirigir um filme que parecia ser destinado a Pablo Larraín (que com Jackie e Spencer pegou dois nomes relacionados e também universalmente conhecidos), ainda mais com sua carreira consideravelmente curta (apenas três longas em 20 anos) e sem um verdadeiro sucesso. Mas mesmo que o objeto de estudo seja mais interessante que seu pesquisador, é possível perceber onde há Dominik e onde há Marilyn.

Tendo visto apenas dois de seus filmes (o outro, O Homem da Máfia), a marca autoral do cineasta parece ser mesmo essa atmosfera decadente que toma conta da mise-en-scène. Parece que tudo e todos são afetados por uma marcha lenta de destruição que se constrói sutilmente ao redor, e que surpreendentemente funciona em núcleos tão distintos como a ralé da máfia e o alto-escalão de Hollywood. O verde musgo que tornava o longa estrelado por Brad Pitt (outro ícone atemporal de beleza) em uma experiência sufocante, aqui dá lugar a uma variedade de formas e texturas, como se o filme fosse se despedaçando e tentando se remontar depois.

Algo que a própria Ana de Armas fala em determinado momento, em como no Cinema te picotam com a edição, enquanto o Teatro seria atuação de verdade. O que me parece reforçar duas ideias: (a primeira de que) qualquer filme com Marilyn Monroe se torna um filme de Marilyn Monroe, mesmo que (a segunda) Ana de Armas nunca se torne Marilyn Monroe de verdade - justamente por não sabermos o que é Marilyn e o que é Norma (constituindo assim algo muito mais difícil do que uma simples imitação ancorada em próteses e figurinos).

Tal qual um texto que li sobre Acossado (e não muito diferente de seu papel em Blade Runner 2049), a atriz é uma projeção de um ícone que, por sua vez, era também a projeção de uma pessoa que poucos conheceram de verdade.

Assim, todos os mitos que o filme aborda (dos abortos à Kennedy) assumem um caráter de desdém quanto à sua factualidade, ao passo que ajudam a construir o mito que foi aquela mulher. A tentativa de assassinato da mãe, com o calor do fogo - e a superfície da água - distorcendo a imagem, tem uma função muito mais simbólica (fênix?) do que textual. O quadro do suposto pai surge então quase como um Rosebud, que deixa claro que o filme jamais poderia se resolver sem uma chave que nem a própria, aparentemente, encontrou.

Essa investigação não factual, mas que procura entender Marilyn como fenômeno meticulosamente criado pelo Cinema, pode ter uma bússola moral no mínimo duvidosa, pra não dizer irresponsável e agressiva em como mostra os abusos sofridos por ela (além de viajar pontualmente como nas conversas Malickianas com os fetos), mas certamente cria momentos marcantes em várias dessas cenas especulativas.

Atacando também a assustadora onda de conservadorismo instaurada no Cinema nos dias de hoje, Dominik trata como abominação os desejos dos homens ao redor de Marilyn - usando uma câmera lenta e distorções em CGI que transformam o mar de “admiradores” em aberrações -, e com afeto seu trisal com dois jovens igualmente famosos que pareciam ao menos viver no mesmo mundo que ela. Daí, o sexo que transborda em um fade para as cataratas do Niágara (cenário de Torrentes de Paixão) é das mais fascinantes transições que o Cinema produziu em 2022, justamente por mostrar o sexo não como tabu, mas como parte da libertação provocada por ela nos anos 50.

Cena essa que resume também a abordagem narrativa, que parece habitar um limbo entre o sonho americano e a tragédia anunciada. Cada trauma desenvolve um novo aspecto de sua carreira, cada relacionamento a muda de tal maneira que ela precisa novamente recorrer a persona que havia criado. Uma mulher absolutamente inalcançável, mas que age como se pudesse ser conquistada pelo mais medíocre dos homens, usando de sua ingenuidade opcional como escudo. Assim, Marilyn Monroe surge como um escape de uma vida turbulenta, transformando a mulher em personagem, e a personagem em uma entidade própria.

Isso, mesmo que o que vejamos jamais seja a magia que a atriz provocava em tela. Assim como em Elvis, não é um filme sobre o encanto de sua personagem principal (o que também soa como desperdício, se pelo menos um mais justificável que no filme de Baz Luhrmann), mas sobre os bastidores obscuros de uma indústria que tentou domar o indomável mas que, mesmo tendo sucedido em vida (suas mortes como provas), é incapaz de controlar seus respectivos impactos através das gerações.

Daí também as diferentes formas como tentativas de controle: para uma cena a centralização do quadro fechado, para outra a tela esticada na horizontal, em outra um plano subjetivo de dentro de uma gaveta que corta a tela na vertical. Mas Marilyn é sempre forte demais e força o filme a se adaptar.

Algo que também conversa com a primeira sequência do filme, onírica, com os flashes carregando. Ao mesmo tempo que as formas não conseguem controlá-la, fazem de tudo para mantê-la vista. A GoPro, utilizada duas vezes, e a câmera que parece ser alguém que a acompanha diariamente, correndo em sua direção quando tropeça, são quase uma atualização de Cassavetes para a era digital. Olhos sempre atentos, registrando tudo, mas nunca interferindo para ajudar. Um Cinema implacável e quase insensível.

A estilização é dualista: o colorido surge etéreo em momentos cotidianos, talvez os de paz, mas também nos abusos. O preto e branco é contrastado e desnorteante, geralmente pontuado por movimentos elaborados de câmera que provocam uma descontinuidade que apenas a modernidade tecnológica poderia oferecer, conferindo às formas do passado novas possibilidades.

Imagens sobre imagens, imagens que se conectam, confundem e afetam. Testemunhas infinitas, nos mais diversos aspectos (do 4:3 ao TikTok), de uma criatura que certamente deve estar prestes a fazer algo de interessante.

O que torna toda a exposição do corpo de Ana de Armas algo propositalmente desconfortável. Acredito que sua interpretação seja o oposto do que a Academia procura. Vítima sem estar vitimizada, intensa sem “desaparecer sobre o papel”, Ana certamente faz o trabalho mais complexo da carreira. Auxiliada por um trabalho excepcional de caracterização, o fato de ser mais magra que Marilyn acaba sendo por si só um elemento de linguagem. O sotaque Cubano, que aqui e ali ainda entrega às origens diferentes das duas, dá um toque brilhante em mostrar como ela própria projeta em si Marilyn, mas nunca a assume por completo - talvez uma luta interna que a própria possuísse em vida.

Para além do que comentei sobre mitos e mito, Blonde é menos uma biografia e mais uma investigação sobre uma das figuras mais encantadoras do Cinema, menos sobre quem era e mais sobre o que a fez. O que escancara o olhar limitado de espectadores e críticos em pleno 2022. Enquanto muitos debatem o que é real e o que não é em Blonde, a verdade é que o próprio jamais esteve preocupado com isso e sucede em ser uma obra rara, que ao menos tenta habitar um tempo diferente.

A existência de um filme assim, em 2022, é uma espécie de milagre pra mim. A tendência seria certamente vender Blonde como “a reencarnação de Marilyn Monroe”, com pessoas que conviveram com ela (as poucas ainda vivas) dizendo como Ana de Armas “desapareceu no papel”, mas o real objetivo parece ser procurar entender Marilyn Monroe como fenômeno único, investigá-la com tudo que o Cinema contemporâneo tem a disposição… talvez apenas para constatar que em toda sua história, não houve, e nem haverá, outra mulher como aquela.

8.1

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