Crítica | Cloud (2024)

O QUE RESTA DE HUMANIDADE

Filme de Kiyoshi Kurosawa aborda a descaracterização do ser humano por meio da internet


Decidindo por escrever este texto em reação ao lançamento de Cloud nos cinemas brasileiros, revisitei anotações que havia feito à época de seu lançamento mundial, no final de 2024. Acabei encontrando o texto a seguir, que pouco lembrava, traçando uma comparação entre Kurosawa e Hong Sang-soo:


Este relato do escondimento não diz respeito apenas à presença ou à ausência. Acontece que aquilo que está presente esconde a presença. (…) É aqui que reside a crueza de Ozu. Podemos nós imaginar uma experiência mais incômoda do que olhar para um filme onde somente encontramos imagens?
— SHIGEHIKO HASUMI

Há uma certa semelhança entre os filmes de Kiyoshi Kurosawa e Hong Sang-soo, dois dos diretores mais prolíficos e relevantes do cinema contemporâneo, que se acentuou no momento em que vi alguns de seus filmes de maneira subsequente. 

Por um lado, é difícil imaginar que as ficções hora científicas, hora sobrenaturais de Kurosawa se assemelham de qualquer modo às autoficções de Hong, que delegam todo seu aspecto sobrenatural à uma sutileza emprestada de Fritz Lang, sistematizada sob o estilo próprio do sul-coreano. É possível dizer que Hong também filma fantasmas, mas se os de Kurosawa se manifestam (tanto por efeitos visuais, como por recursos textuais), os de Hong são captados.

Talvez um filme interessante para pensar o cinema dos dois seja Sinais (2002), de M. Night Shyamalan: em sua cena mais famosa, uma câmera de vídeo capta um alienígena. Ao final do filme, outro alienígena se materializa pelo reflexo da televisão, para apenas então ser enquadrado como elemento direto da cena. Se usarmos este alienígena como elemento na comparação entre Kurosawa e Hong, sua primeira aparição seria a de Hong, enquanto a segunda seria a de Kurosawa.

Enquanto o japonês corrompe o mundo pela composição minuciosa que reorganiza os elementos deste mundo (os enquadramentos dentro do enquadramento, as margens do mundo real e do digital/sobrenatural), o sul coreano o interpreta pela repetição (o cotidiano), adição (os fantasmas do passado) e exclusão destes elementos (os zooms e movimentos de câmera) por meio da intervenção do dispositivo.

Mesmo quando filmam coisas semelhantes, a gênese vem de lugares distintos. Os jantares, em Kurosawa, comentam a corrosão da tradição, o modo como as transformações industriais do Japão influem no microcosmo familiar e nas relações interpessoais. Já em Hong estas mudanças vêm de dentro, são os pequenos, quase imperceptíveis desníveis em um ato tão comum como dividir uma refeição que pouco a pouco se transformam em uma mudança drástica na camada social. O cinema de Kurosawa, portanto, é como um rio que, em suas ramificações, abastece pequenos poços, lagos e lagoas. O de Hong é como uma pequena nascente que, se unindo a tantas outras, muda o curso da água.

Talvez seja essa tentativa de interpretar a contemporaneidade, interpretar o mundo que vivemos hoje como uma sociedade globalizada, que os une tanto como artistas. Tanto para Kurosawa como para Hong o dilema da cultura é um assombro, uma barreira impossível de ser superada. Em O Fim da Jornada, o Começo de Tudo (2019) Kurosawa filma uma jovem japonesa em uma viagem pelo Uzbequistão, que se transforma em filme de terror única e exclusivamente pela impossibilidade da emulsão. Em Noite e Dia (2009), e nos filmes com Isabelle Huppert, Hong evidencia barreiras intransponíveis, línguas e linguagem que diferem, línguas que influenciam linguagens, e linguagens que escancaram o que a língua não consegue.

E isso tudo me importa, ao escrever este texto, porque entendendo o que os une é possível compreender o que os separa, e a partir daí as individualidades de cada um. E em um ano onde os dois lançam cinco filmes em conjunto (Kurosawa respondeu o hiato de quatro anos com três filmes em 2024), não me parece haver hora mais apropriada. Pois chegamos à 2024 e Hong lança dois filmes (o que, para ele, é normal), enquanto Kurosawa lança três (seu recorde pessoal). Em um deles, uma regravação de seu próprio O Caminho da Serpente (1998), filme que não apenas os aproxima, mas também os coloca a uma distância intransponível.


Não completei o texto à época, e tentar completá-lo agora seria contraproducente. A rigor, a ideia era tratar de O Caminho da Serpente, mas relendo esta investigação, a trago para as seguintes reflexões sobre Cloud, em texto escrito, como dito anteriormente, mediante o lançamento do filme no Brasil.


Para Kiyoshi Kurosawa a internet é a metáfora perfeita para o fim do mundo. Fim do mundo que ele já filmou algumas vezes anteriormente, mais especificamente em Pulse (2001), onde um vírus digital fazia as pessoas se suicidarem. Mas se aquela que é sua obra prima transforma em fantasma as angústias do ser humano preso pelos fios, Cloud não é nem tão ameaçador. Ominous, na verdade, é a palavra que procuro, conceito que não se traduz tão bem para o português, que indica algo de uma esperança sombria, de um agouro inevitável. Cloud é o mundo pós agouro.

O protagonista, um homem que revende coisas na internet, é um avatar para a identidade anônima online: o vemos em algo de vida com a namorada, mas tudo é abarrotado de fios, de caixas, de coisas que não representam, conversam ou significam sua humanidade mais do que a obstruem. Ou pior, substituem. Ryosuke, um avatar dos avatares, não mais um homem que um ícone no topo de uma página, não empresta nem mesmo seus sentimentos mais sombrios para que possamos ter um vislumbre da pessoa por trás do computador. Ele só revende.

Ao que o final do filme, a transformação de uma história tão morbidamente humana em uma espécie de puro mal, se torna sua representação por meio de um terceiro, uma figura inumana, pois não há mais expressão individual em um mundo que de tão individualizado se torna um coletivo de fragmentos. O que a internet faz, por Kurosawa, e por mim também, não é dar voz aos que não tem, mas diluir suas individualidades em uma página de comentários, que se torna então uma entidade capaz de atrocidades que, para o indivíduo, seriam impensáveis.

Conversando com O Caminho da Serpente (2024), remake de seu próprio filme de 1998, Cloud evolui em um conflito físico, um filme de ação destituído de emoção, onde a violência se torna real no sentido metafísico e no sentido material: a violência que sai da tela do computador, e a violência que, sem floreios, se assemelha àquela sensação anti-natural que sentimos quando em situações de exposição. E é curioso como os filmes tem um caminho inverso: se aquele termina na tela de um computador, este termina na consumação de seu ambiente digital: os perseguidores que querem eliminar Ryosuke, e os efeitos visuais que abrem o portal ao final do filme.

Cloud me parece então fazer um caminho semelhante ao de Pulse (2001), o homem que vai à internet, é destituído de sua humanidade, que então se manifesta nos avatares de carne e osso. De certo modo, é um filme que remete ao que Bacurau (2019) tenta fazer, o problema de Kleber sendo filmar sempre com um panfleto entre a câmera e o mundo. Se o filme de Kleber suscita mensagens e protestos, o de Kurosawa suscita o comportamento do homem no ambiente digital de maneira direta, sem ponderar ou julgar, e é nessa apresentação sem floreios que reside a verdadeira denúncia.

É interessante pensar esta nova leva de filmes de Kurosawa como uma renovada desesperança (ao lado dos dois comentados, o média metragem Chime é talvez a melhor condensação de sua carreira), um diretor de fala e olhar gentil, mas que guarda uma compreensão tão profunda do atual estado do ser humano que parece ser o único capaz de revelar o mundo que cada vez mais se esconde atrás de um computador.

A questão é que continuamos aqui.

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