Crítica | Creed (2015)

APRENDENDO A SOCAR

Filme de Ryan Coogler propõe conversa entre passado e presente no imaginário americano


Tive um professor de jornalismo esportivo que dizia que, quando sobre qualquer caso/evento/partida, a palavra mais essencial e indispensável é contexto. Adaptando para o discurso de Rocky, que se torna a filosofia central para o Creed de Michael B. Jordan, podemos dizer que uma luta nunca é só uma luta, um round nunca é só um round, e um soco nunca é só um soco. Cada detalhe contribui para a totalidade, cada movimento para o plano, cada plano para a cena, cada cena para o filme. E o filme nunca é só um filme.

O cinema, assim como a literatura, é uma obra de arte a ser apreciada mais pela memória que pelo ato de olhar. Ignorando revisitas, passamos duas horas assistindo ao filme, e então todo o resto do tempo com uma ideia dele enraizada na cabeça. Uma ideia que pode, e deve, se modificar conforme retornamos a ela, conforme assistimos novas coisas, conforme continuamos a nos relacionar com o mundo. Por isso é importante questionar os gostos da infância, não para demolir sua presença e importância na totalidade de nossa vida, mas para que possamos avançar em relação a ela.

Os filmes de Rocky são de fundamental importância no meu crescimento como espectador, e também como pessoa. O mesmo posso dizer da trilogia de Creed, e sua influência em diferentes esferas da vida. O que não significa que, mesmo com o mesmo arrepio toda vez que a trilha sobe, ou que um soco leva um gigante ao chão, eu não possa também me distanciar dessas emoções e ver o filme, e não apenas seus efeitos.


UMA HOLLYWOOD EM ENTRAVE

Na altura de 2015, os remakes e reboots e sequências e prequências já eram a norma em uma Hollywood cada vez menos criativa. É preciso ver Creed tanto como parte dessa onda de filmes, como também parte dos filmes protagonizados por Stallone, agora carinhosamente realocado como personagem secundário. Talvez este seja, inclusive, o maior embate para Ryan Coogler, muito mais do que lutas em plano sequência ou sequências de treinamento expansivas. É no trato entre Creed e Rocky, heróis de séculos diferentes - um, símbolo do americano médio, outro, da representatividade negra -, que o filme atinge seus mais altos momentos.

Coogler não necessariamente escapa à onda avassaladora que viria por afetar mesmo diretores renomados (de Scorsese a Argento, para ficar nos “italianos”), provocada por uma vida cada vez mais audiovisual, onde os meios passam a afetar mesmo aqueles que nasceram distantes da revolução digital, transformando filmes em extensões da centralização do eu, do rosto, do close, do vídeo de instagram. O que consegue o jovem diretor, ainda no seu segundo filme, é propor um deslocamento: enquanto a abundância de closes de rosto ainda é necessidade, ele não necessariamente os centraliza, mas os joga para as extremidades do plano. Conversas pseudo dramatizadas pela proximidade, mas que não delegam a interação ao extracampo.

Os melhores planos, inclusive, são os que misturam Adonis ao ambiente, seja imitando (ou lutando contra) o pai, projetado em vídeo, ou sendo apresentado à equipe de Rocky em uma academia mal iluminada, ou pedindo para que tirem suas luvas porque precisa cagar antes da luta. Outros até são mais pretensiosos, como aquele que o mostra aquecendo em um cômodo enquanto Rocky resolve detalhes da luta no corredor, mas há ao menos motivo para se afastar a câmera e integrar dois ambientes sem que eles se toquem: tanto Rocky como Adonis estão ocupando agora os cargos que foram de Apollo e Mickey, uma dualidade em legado que é o ponto central do filme.

Há outros momentos que comentam, sutilmente, as diferenças culturais da qual o filme consegue se alocar para que não o esmaguem. Antes de socar o amigo músico de Bianca, Adonis tira uma foto com ele que diz “essa vai pro Instagram”, mas a cena não é afetada pela presença do digital, ela apenas o reconhece. O mesmo acontece quando Adonis anota o que Rocky diz em um celular, e diz que já está tudo na nuvem, e o olhar de Stallone para o céu retrata este embate de gerações melhor que praticamente qualquer filme hollywoodiano dos últimos dez anos.

Com três filmes no currículo (e duas supervisões para a Marvel), talvez seja possível dizer que Coogler tem no apreço pelo brega algo que pode se desenvolver em autoria: se em Fruitvale Station (2013) era a dança no metrô e no recente Pecadores (2025) é a dança anacrônica na boate, em Creed a breguice vem na sequência de treinamento, ainda um pouco acanhada em abraçar o Rap (que se sufoca pelo som das motos e pela trilha clássica, ao invés de se acoplar a estes como acontece na sequência do segundo filme), mas que então se permite desaguar na figura de Adonis, agora centralizado pelas motos, em uma cena mais para o videomaker que para o cinema, mas que ao menos se utiliza de elementos do filme para chegar até ali.

O mesmo pode se dizer da luta contra o rapaz mexicano no meio do filme (inclusive, os vilões de Adonis na trilogia são todos vilões comuns do americano: mexicanos, russos, negros) que, em plano sequência, ao mesmo tempo aponta para as possibilidades e tendências do momento (essa necessidade do verossímil) e para a breguice das lutas de Rocky: antes nas coreografias, agora na câmera.


Mais cedo no filme, Adonis faz uma referência a O Poderoso Chefão (1972), e é possível dizer que há ao menos uma tentativa de organizar a narrativa para que se assemelhe à do filme de Coppola. O jovem Adonis, encarcerado em uma instituição, quer conquistar o mundo, e para isso tem de fazer uma viagem para o passado, para os becos italianos do amigo de seu pai. Já o velho Rocky, engrenagem de sua própria rotina no mundo que lhe basta (aquele cantinho de Filadélfia), tem de voltar para o mundo de outrora, voltar para frente das luzes e das câmeras, e é nessa viagem que resgata o que precisa para poder olhar para o futuro.

A cena final, se óbvia e complacente, é também um belo jeito de sinalizar o que é, de fato, o filme de Ryan Coogler. Ver Rocky sofrer para subir aqueles degraus é um golpe sujo, por conta da certeza de sua eficácia. E os dois podem agora olhar para a skyline da Filadélfia, passado, presente e futuro, todos em um único plano.

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