Crítica | O Expresso do Amanhã

Baseado na história em quadrinhos de Jacques Lob e Jean-Marc Rochette, “O Expresso do Amanhã” (ou o também simples título original, “Snowpiercer”) é um daqueles casos de um filme que, se tivesse sido vendido da maneira correta, poderia ter feito centenas de milhões de dólares, iniciado uma franquia com várias sequências, inspirado uma série paralela (que está sendo produzida, na verdade) e se fixado na cultura popular assim como outras ficções científicas de sua época também entraram (vide “Interestelar”).

Porém, a produção coreano-tcheca, que tomou anos de dedicação de seu diretor Bong Joon-ho, encontrou, além dos problemas estruturais para financiar um filme deste porte (o mais caro da história da Coréia do Sul) sem a ajuda de produtoras americanas, um complicado e limitado lançamento nos Estados Unidos, resultando em uma cifra apenas duas vezes maior que o orçamento total do filme o que, muitas vezes, não é o suficiente para cobrir o prejuízo. E, dito tudo isso, por mais que seja uma pena que a obra da vida de Joon-ho, que passou sete anos envolvido em sua produção, não tenha recebido o devido conhecimento, não consigo julgar se isso não fora, de certa forma, positivo para a história em torno do longa.

As pessoas estão fadadas a descobrir à “O Expresso do Amanhã” assim como descobriram, descobrem e seguirão descobrindo muitos dos clássicos cult do cinema por meio de listas, críticas e recomendações de amigos que já conferiram as mesmas. E o único motivo de três parágrafos serem necessários para falar sobre algo tão comum no cinema é que este filme, em especial, repito, poderia ter se tornado algo grande. Afinal, contando esta história de sobrevivência e revolução, situada em um cenário totalmente inusitado - um trem que abriga os últimos sobreviventes da humanidade após um desastre biológico transformar o planeta inteiro em uma geleira -, com personagens heroicos e trágicos ao mesmo tempo e com visuais tão impressionantes como qualquer superprodução de Hollywood, não é difícil, ao assistir o filme, de entender o porquê.

E digo isso mesmo com a direção altamente estilizada de Joon-ho que honra a origem cartunesca da história, empregando, além de estranhos elementos expressos em diversas composições visuais, uma estrutura narrativa criada por ele próprio, apenas se baseando nos quadrinhos que a originaram. O diretor que, além de comandar com maestria o pouco espaço de cenário que tinha, nos mostra algumas das cenas de ação mais viscerais, realistas e bem coreografadas de toda a década, não precisando apelar para o gore em excesso para que o impacto de sua violência seja sentido na espinha dos telespectadores, tirando o melhor efeito possível tanto da câmera tremida como da câmera lenta, técnicas já hiper saturadas em filmes de ação.

Em uma das cenas de combate, realizada quase inteiramente no escuro, é surreal como a claustrofobia e o silêncio provocados pelo ambiente se mostram ainda mais letais que os inimigos. Em outro momento, um dos personagens tem seu braço colocado para fora do trem até que congele e, apesar de não assistirmos ao mesmo sendo quebrado, o absurdismo envolvido na ação é de chocar a qualquer um, mais um exemplo de sua habilidade em balancear a violência visual com a física sem excessos.

Mas o maior valor deste filme está, de longe, em um dos designs de produção mais detalhistas e vivos desde a trilogia “Senhor dos Anéis” de Peter Jackson. Com uma equipe composta de nomes tanto coreanos como tchecos, 26 vagões foram criados e colocados para rodar em um gimbal (uma espécie de giroscópio que simula o movimento de um trem de verdade) durante as gravações e o efeito pode ser sentido em praticamente todas as tomadas do filme, muito também graças à mixagem de som que a quase todo momento lhe relembra do som das rodas percorrendo os trilhos. Mas o que mais impressiona é a inventividade e o realismo de cada um dos cenários, desde a sujeira e superpopulação dos primeiros vagões à vivacidade e cores super saturadas dos últimos e, por mais que os cenários sejam contrastantes tanto visual como conceitualmente, o trabalho de cinematografia, do também coreano Hong Kyung-pyo, auxilia em deixar toda a jornada ao longo do trem esteticamente harmônica. Por último, os efeitos visuais, (felizmente) utilizados apenas quando necessários, não figuram entre o melhor que a tecnologia pode oferecer, mesmo que em nenhum momento te tirem da experiência que se prova imersiva do começo ao fim.

Simplificando: tecnicamente, “O Expresso do Amanhã” é praticamente impecável.

O que nos leva aos fatores que impedem este ótimo filme de escalar um degrau a mais em um gênero que viu tanta qualidade no século 21. Fica um alerta a pequenos spoilers abaixo.

Veja bem, por mais original que possa ser, a história, recriada por Joon-ho para poder ser adaptada em um filme, é mais um exemplo da já muito conhecida jornada do herói (com o filme começando na etapa 5, especificamente) que, neste caso, se assemelha até mesmo à jornada de um personagem em um videogame de plataforma. Curtis (interpretado por Chris Evans, mais sobre ele adiante), tem um velho mentor em John Hurt (4), tem de atravessar as barreiras de seu vagão (5), junto à um número de aliados (com direito ao melhor amigo desastrado, a menina que contém os segredos, o homem que ajuda por interesse e não amizade) (6), que têm de se aproximar do último vagão (7), onde Curtis deve se provar (8) digno de atingir a recompensa (9) de comandar o trem, para descobrir se terá ou não um caminho de volta ao mundo que conhecia anteriormente (10) e, quando consegue, tem de enfrentar seu inimigo uma última vez (11), para então poder retornar para o mundo que acredita ser o certo (12). Os evocativos efeitos desta fórmula podem ser sentidos positivamente ao longo da progressão da jornada, o que torna ainda mais decepcionante o fato de seu roteiro nunca atingir o enorme potencial que possui.

Era necessário, em um filme como esse, que o cenário básico onde a narrativa se passa fosse explicado, mas na maior parte do longa tudo que ouvimos são diálogos expositivos que acabam prejudicando aquela que poderia ser a maior virtude desta história: a ambiguidade. Logo no momento em que somos apresentados ao sistema de castas do trem a alegoria se instá-la e, por mais que seja questionada brevemente pelo personagem de Ed Harris (com um papel similar em “Show de Truman”, onde também comandava um experimento forçado do mito da caverna de Platão), ao final, não é como se fossemos realmente influenciados a pensar como ela poderia ser a única solução. Em nenhum momento este trem não parece ir para o lugar onde sabíamos que iria desde o começo, mesmo que possuísse engrenagens que a cada nova resolução girassem de forma diferente.

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Felizmente, Joon-ho foi capaz de escrever personagens complexos, cujas índoles vão além da luta entre o bem e o mal. Isso fica especialmente evidenciado em Curtis Everett, o líder do grupo e a melhor interpretação da carreira de Chris Evans (dito por alguém que urrou no cinema ao vê-lo levantar o Mjolnir). Dotado de uma vontade de ajudar a todos, mas marcado por erros obscuros de seu passado, Curtis em nenhum momento coloca suas vontades próprias acima do objetivo final e assistir-lo revelar sua trágica história é um dos momentos mais impactantes em um filme repleto deles. A construção física do personagem que, com camadas de maquiagem e roupas deixaram Evans um tanto menos gigante, também impressiona e é essencial em tornar um homem associado à comédias-românticas e a filmes de super herói em apenas mais um naquele vagão com pessoas demais.

Como mencionado antes, os demais personagens são todos variações de personagens existentes em diversos outros filmes. E se o elenco norte-americano está um tanto caricato em excesso, assistir à Octavia Spencer varrer o chão com alguns vilões é um dos maiores prazeres que já tive em um filme de ação. Song Kang Ho, parceiro usual de Joon-ho é o principal destaque após Evans, superando Tilda Swinton e Ed Harris, nomes de peso que infelizmente acabam tendo que melhorar seus personagens.

“O Expresso do Amanhã”, como dito anteriormente, não pôde alcançar todo o sucesso que teria mais do que condições de alcançar. É um filme que, também, falha em abusar ao máximo dos temas política e socialmente carregados que representa. Mas, apesar disso, é uma obra que merece ser assistida, pois sai dos trilhos por tão pouco que quase se passa por um clássico instantâneo.

8.2

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