Crítica | Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância)

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Sobre o que falamos quando falamos de amor?

O título da peça inspirada no livro de short stories de Raymond Carver é, também, a pergunta central que permeia a alucinante e fantástica narrativa de “Birdman”. Nela, o diretor, Alejandro Gonzales Iñárritu, e o mago da cinematografia, Emmanuel Lubezki, conseguem um feito poucas vezes visto na história do cinema e, por mais que a ilusão de se fazer um filme gravado inteiramente em uma tomada já tenha sido realizada algumas vezes - “Rope”, de Alfred Hitchock, em 1948, por exemplo -, não é como se o encantamento perdesse seu efeito.

E sempre que se falar de “Birdman” e o nome de Lubezki não for mencionado, suspeite de quem está falando, pois não seria possível que esta ilusão fosse tão eficaz caso não fosse o melhor cinematógrafo em atividade que a supervisionasse. Não que seja exatamente impossível encontrar os momentos onde o longa é editado, mas é uma atenção que provavelmente vá lhe tirar de uma história que necessita de atenção para seu total entendimento e que deve lhe capturar por completo logo nas primeiras cenas.

O grande Roger Ebert escreveu sobre “Russian Ark”, filme de Alexander Sokurov que, diferentemente de “Birdman” que fora editado para dar a ilusão de uma única tomada, foi realmente gravado em um único plano: Se o cinema as vezes parece um sonho, então cada edição é um despertar. Então, quase como que se inspirando na bela frase de Roger, Iñárritu visualizou esta que, até agora, é sua maior obra, como um filme que por vezes mistura o real e o imaginário, onde o muro que separa a sanidade da loucura é a todo momento contemplado por personagens que não decidem se descem as escadas de um lado ou se pulam do outro. Um momento exemplifica isso, quando a personagem de Emma Stone está sentada, no terraço do prédio onde a peça está sendo ensaiada e será exibida, contemplando o chão, onde o mundo real acontece. Sabendo que, ao voltar e entrar por aquela porta, volta para uma versão insanamente diferente deste.

Então, prefiro alterar a pergunta que abriu o texto:

Sobre o que falamos quando falamos de “Birdman”?

Riggan Thomson é Michael Keaton, e não o contrário, um homem que encontrou sucesso interpretando um super-herói antes destes virarem abundantes e, desde então, não conseguiu retomar os trilhos da carreira. Agora ele quer se provar um artista digno em uma peça da Broadway, a qual escreveu, dirige e estrela. Mas o que ele realmente busca, assim como muitos de nós, é admiração, a qual ele tão problematicamente confunde por amor.

Em uma cena arrebatadora onde confronta sua filha, a talentosíssima Stone em um dos melhores papéis da carreira, ela expõe essa necessidade dele à ele próprio com toda a veracidade de seus grandes e belos olhos verdes. Ela, mais jovem, talvez até mais problemática e definitivamente mais perdida na vida, parece já ter entendido o que é, enquanto seu pai ainda luta constantemente com a voz de Birdman em sua cabeça, tentando resistir a tentação de largar tudo de mão, arrecadar um bilhão de dólares e ser chamado para a iniciativa dos Vingadores. Iñáritu inteligente transforma esses momentos onde ele conversa consigo mesmo em tijolos que caem daquele muro, o qual falei antes, onde fica quase impossível dizer o que é verdade e o que não é, dando à natureza realista e visceral da história temas fantásticos que fazem entrarmos nas próprias viagens do personagem cheio de falhas, o qual acabamos sentindo a mais profunda empatia.

Como dito por Willem Dafoe em “Homem-Aranha 2”, a única coisa que as pessoas gostam mais que um herói é ver um herói falhar, e a todo momento somos lembrados destes dois lados da moeda durante a projeção. Seja por seus aliados que o confrontam - Emma Stone e o brilhante Edward Norton interpretando à uma versão ainda mais absurda de si mesmo - ou por aqueles que o respeitam - a amável Andrea Riseborough que tem uma cena similar à pintura de Vênus que, por tudo menos coincidência, é o nome do primeiro filme em que atuou, Naomi Wats em um papel que podeira muito bem ser a sequência do seu em “Cidade dos Sonhos”, Zach Galifianakis interpretando a si mesmo da melhor forma até hoje -, seja pelas pessoas que o reconhecem na rua e ou tiram fotos ou gritam na sua cara como ele é péssimo. Infelizmente, para Thompson, o ódio ecoa muito mais que o amor e ele, apesar de bem quisto por todos a sua volta - incluindo filha e difícil co-estrela -, ainda tem dificuldades de se olhar no espelho e não enxergar apenas uma concha vazia do auge de sua carreira (como evidenciado nas cenas onde o pôster de Birdman pode ser visto no reflexo em seu camarim).

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Justamente essa barreira, tão embaçada entre ordinário e extraordinário, conversa diretamente com a conexão do personagem de Keaton com ele próprio: ao sentirmos por Riggan Thomson, sentimos pela história real de Michael Keaton, e isso torna o personagem mais relacionável e real, por mais que em seus - hilários, diga-se de passagem - devaneios enxergue pássaros gigantes atacando a cidade e tente granir como um ave em meio à uma rua cheia de gente. Talvez o melhor exemplo, que evidencie como os desejos e medos mais profundos de Thomson se relacionam com os nossos, seja quando ele tem de dar a volta no teatro vestindo apenas cuecas, encenando acordado um pesadelo que vários de nós já tivemos tantas vezes.

Não é um filme fácil, e por ser completamente dependente de suas interpretações - todas excepcionais, firma-se - acaba se tornando quase exaustivo, mesmo tendo menos de duas horas. Porém, para todos que não desistirem, a recompensa vai além do belo e ambíguo final, digno de debates extensivos não apenas em relação ao que representa, mas à tudo que o filme realmente significa.

Em “Birdman”, o amor move um personagem que tem como maior virtude a ignorância perante seu próprio estado. Mais do que uma carta de amor à arte (tanto do cinema, como da literatura, como da música tão bem utilizada durante a produção, como do teatro), mais do que um protesto à banalidade dos filmes de super-herói, mais do que uma dramédia tão trágica que podemos apenas rir, “Birdman” é um lembrete de que todos somos amados de alguma forma, mesmo que façamos o possível para ignorar o que temos em busca do que julgamos querer.

Quando falamos de “Birdman”, falamos de amor.

9.7

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