Crítica | Um "Deslize" da Netflix

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Por motivos de força maior fui obrigado a assistir à “Deslize”, filme da Netflix estrelando o atual crush juvenil Noah Centineo. E não existiriam motivos para que escrevesse qualquer coisa sobre um filme que, lançado em 2018, não deve se tornar um sucesso ao passo de “Sierra Burges”, “O Date Perfeito” e “Para Todos os Garotos que Já Amei”, este último que até continuação ganhará ainda em 2019. Porém, me senti na obrigação de avisar qualquer pessoa interessada em “zerar” a filmografia do jovem, que já figura como garoto propaganda da Netflix, para se manter o mais longe possível deste deslize, sem aspas desta vez, desta empresa que, indiscutivelmente, preza quantidade acima de qualidade. E espero que, ao final desta crítica, concordem comigo que o longa entra para aquela seleta lista onde a tradução brasileira combina muito mais com a produção do que o título original (“Swiped” em inglês).

Mas, antes de me ater aos motivos do porquê de ter odiado este filme com todas as minhas forças - tanto meu lado crítico como pessoal - oferecerei comentários sobre algumas outras obras que tratam sobre temas “similares”.

Em “Blade Runner 2049” (2017), de Dennis Villeneuve, a grande maioria das personagens femininas são subjugadas ou por personagens masculinos, ou pela sociedade, ou pelo sistema. Em “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015), de George Miller, todas as personagens femininas são marginalizadas por personagens masculinos, pela sociedade ou pelo sistema. Na série “O Conto da Aia” (2017-), todas as personagens femininas são subjugadas e/ou marginalizadas por personagens masculinos, pela sociedade ou pelo sistema. E, como diria um personagem cujo próprio filme, apesar de mostrar conteúdo ofensivo de diversas maneiras, é um exemplo de criticar algo ao mesmo tempo em que o saúda, o sistema é foda parceiro.

Talvez você esteja se perguntando o que três ficções científicas/distopias futuras têm a ver com uma “comédia romântica” voltada para um público acostumado a poder desligar o cérebro durante duas horas ou menos. A resposta: todas estas obras (e posso incluir outras ficções científicas recentes, desde “Ela” à “Ex-Machina” ou a filmes mais antigos como “Touro Indomável” ou “Beleza Americana”) apresentam um contexto machista e opressor ao sexo feminino, mas a ideologia de todas elas é, em sua essência, feminista (ok, “Touro Indomável” não, mas não deixa de ser um retrato do machismo de sua época), mostrando não como o mundo deveria ser, ou como será, mas como é hoje, onde lindas, inteligentes, complexas e poderosas criaturas são enjauladas diariamente pela sociedade na qual vivemos, e tem sido assim desde o início dos tempos. Bem, na verdade, a pergunta (do começo do parágrafo) é válida, afinal, a aberração inexplicavelmente dirigida por uma mulher, Ann Deborah Fishman, faz o contrário: traveste uma história de feminista enquanto apresenta um dos retratos sociais mais ofensivamente machistas que já tive o desprazer de assistir.

Na trama, um grupo de três jovens universitários, cansados com o excesso de compromisso impresso em aplicativos de encontro (sim, o roteiro sugere que o Tinder faz com que seus usuários se casem) decidem criar um aplicativo onde as mulheres não podem perguntar os nomes, afazeres ou interesses dos homens e se contentar em vender fotos semi-nuas suas em troca de sexo casual. Para isso, o trio oferece pagar a transferência de um jovem gênio do campus para uma grande faculdade caso o mesmo desenvolva o aplicativo, termo que ele concorda.

E se esse parágrafo já não é o suficiente para lhe fazer pular este filme: UM, reveja seus pensamentos como ser humano e DOIS, continue lendo.

Logo, o aplicativo começa a fazer sucesso com todos os jovens do campus e, também, com todos os homens que surgem em tela, sugerindo que todos os integrantes do sexo masculino julguem um absurdo que uma garota queira conhecê-los melhor após um primeiro encontro (no caso, o aplicativo as proíbe de utilizar a palavra encontro). Mas tudo bem, pois, mesmo achando que não ajude a resolver o problema generalizar todos os homens como seres abomináveis, o que o roteiro faz com todas as mulheres do longa é muito, muito pior. Simplesmente, todas as garotas do campus aceitam as condições e aderem ao aplicativo, comemorando o fato de serem objetificadas pelos homens sem poder fazer o mesmo em troca, pois o aplicativo chamado de “Jungle” (selva em inglês), serve apenas para que os homens escolham com quem querem sair. E, não bastando todas as meninas do campus (exceto a principal, é claro), mulheres adultas, as quais poderíamos julgar como tendo um pensamento mais bem formado, também aderem ao aplicativo, aceitando ser objeto sexual de outros homens.

E se esse parágrafo já não é o suficiente para lhe fazer pular este filme: UM, reveja seus pensamentos como ser humano e DOIS, continue lendo.

Mas tudo bem, pois afinal, é uma ironia, certo? Se for, bem, alguém me aponte onde está. Uma coisa é ter personagens femininas como as dos filmes que apontei lá em cima que, de uma forma ou de outra, questionam seu lugar na sociedade em que se encontram e tentam, de alguma forma, se fazer valer. Outra é ter mulheres de todas as idades sem nenhuma personalidade, que simplesmente deixam de usar um aplicativo nocivo para sua própria integridade porque o roteiro decidiu que era hora. Inacreditavelmente, ao final da projeção, uma das meninas, já descontente com o comportamento dos rapazes após perceber, ao menos de leve, o mal que o aplicativo causava a si e suas amigas, aceita sair com o idealizador do aplicativo, pois ele percebeu que não havia sucedido em sua ideia então teria de voltar a se relacionar como nos anos 40, mas não por ter percebido seus erros (inclusive soltando a frase “O Jungle foi um sucesso, acho que vou trocar meu curso para administração”), e sim por não conseguir ficar longe do sexo feminino, pedindo permissão ao amigo para que fique com ela, como quem pede um livro emprestado por um final de semana (ele inclusive fala à ela “eu levo seus livros, sei que não está acostumada”).

E se esse parágrafo já não é o suficiente para lhe fazer pular este filme: UM, reveja seus pensamentos como ser humano e DOIS, continue lendo.

Apesar de o roteiro transformar todos os seus personagens em apenas imagens, sem nenhuma complexidade, seria possível ao menos simpatizar com o programador do aplicativo (que no fim se “arrependeu” de sua atitude) e com a típica boa garota (única no campus, é claro) se os dois não fossem atores tão inexpressivos. Ela até tenta, mas ele não muda seu semblante em absolutamente nenhum momento e temos de acreditar, sem razão alguma, que basta uma declaração sua no final do filme para que ela o aceite, pois afinal, todas as mulheres, em “Deslize”, precisam de um homem. E, surpreendentemente, o casal é o destaque interpretativo do longa, pois o resto parece nem ter começado a aprender a atuar ainda, falando suas falas como se tivessem acabado de lê-las e esquecendo que estão na frente das câmeras após pronunciá-las. E é incrível que Centineo, por mais que esteja atrás de consolidação para poder alavancar papéis maiores, tenha aceitado interpretar a abominação que é seu personagem, o qual consegue tornar ainda mais odioso, pois, infelizmente, não deixa de ser um ator talentoso, mesmo que tenha feito uma terrível escolha.

E se esse parágrafo já não é o suficiente para lhe fazer pular este filme: UM, reveja seus pensamentos como ser humano e DOIS, continue lendo.

Quanto à direção… se torna óbvia a necessidade de cortar custos, a qual a Netflix tão frequentemente abusa, ao repetir ao menos quatro vezes a mesma tomada aérea da fraternidade das meninas e abusar de planos fechados e conjunto, também jogando nos momentos supostamente “emotivos” uma sucata de trilha sonora que devem fazer em abundância para servir à todos os seus filmes. Não há nada de voz artística nessa direção, não há estilo, não há objetivo maior por trás da misógina história que é contada, que mais parece ter sido escrita as pressas com uma quantidade interminável de encheção de linguiça (ao menos quarenta minutos) que, ao final, percebe que estava se alongando demais, e acaba tendo de transformar o clímax final em uma cena de dois minutos onde todas as jovens descobrem quem era o verdadeiro programador e o desculpam por ele não querer sua mãe usando o aplicativo, justificando assim seus motivos para tirá-lo do ar e não porque ele percebeu que havia feito algo errado. E, não contentes com isso, as meninas aprendem sua lição e decidem que a melhor forma de serem representadas é fazendo seu próprio aplicativo, onde elas podem escolher os rapazes que querem transar, dando a eles o que sempre quiseram: sexo casual sem compromisso e sem ter nem o trabalho de passar o dedo na tela para escolher suas parceiras. Ou seja, os machistas ganham de qualquer jeito.

Mas, ao escrever esta crítica, mudo minha opinião. Este é um filme que deve ser assistido, o máximo possível, para que todos percebam o mal que uma arte preguiçosa e mal intencionada pode fazer com a cabeça dos jovens. Este filme deve virar exemplo negativo, tanto de cinema como de comportamento.

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Sim, é zero.

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