Crítica | Democracia em Vertigem
Assim como faz Petra Costa, esse texto vai misturar a minha experiência com a maneira que eu interpreto o filme, afinal não posso deixar de ser eu enquanto assisto um filme e nem quero. E assim como a Petra faz nos primeiros cinco minutos, aviso já nas primeiras linhas que esse texto passa pela minha vida, tanto quanto o “Democracia em Vertigem” passa pela vida da sua diretora. Aparecendo em off do início ao fim, ela se coloca como protagonista observadora da história recente e nem tão recente do Brasil, misturando imagens documentais, acervo de família e gravações próprias feitas para esse filme, Petra traça relações entre a história de seus avô, fundador de uma das maiores empreiteiras do país, a Andrade Gutierrez. Mistura isso com uma boa variedade de imagens inéditas de bastidores de Lula e Dilma, além de entrevista com a ex-presidenta e outras figuras chave da cena política brasileira. Ela faz isso com bastante naturalidade, e o filme acaba sendo um jogo de edição baseado na sua narrativa, o que já dá o tom da proposta diferenciada para o documentário. Porque inexplicavelmente ainda há de se explicar que um documentário necessariamente é um ponto de vista (assim como outro filme) e qualquer escolha de roteiro, edição, trilha sonora são subjetivas. Então sim, “Democracia em Vertigem” é um filme subjetivo. Assim como qualquer outro documentário.
Do lado mais jornalístico o destaque são as diversas imagens dos bastidores de Brasília, dos depoimentos de deputados de diversos partidos, imagens de Lula fazendo articulações políticas, de Dilma e Cardoso fazendo tratativas sobre o processo de impeachment, são imagens públicas e importantes para a memória brasileira. Não sempre construindo de maneira linear, ela mergulha escolhe especialmente o Golpe de 2016 e a prisão de Lula em 2018 e os eventos em torno destes. Agora, sem sombra de dúvidas, Petra apresenta uma coisa inédita no documentário e jornalismo político, que é a presença dos trabalhadores de Brasília em cena, com alguns depoimentos. Na minha opinião, esses são os momentos em que ela imprime o centro sua tese sobre os acontecimentos da política brasileira, colocando em cena pessoas que vivem no seio do poder no país e ao mesmo estão abissalmente separados da política e da democracia, como dito por uma das trabalhadoras do Palácio da Alvorada. São os únicos personagens que não estão na polarização que Petra argumenta no documentário, portanto são os que têm sua opinião mais legitimada perante às câmeras. Os momentos relacionados à trama de Brasília, passa ainda por momentos mais conhecidos, as gravações, os julgamentos, os embates na rua, as tramas políticas, todas notórias da população brasileira, mas representadas uma dinâmica que permite passar por todos momentos durante o filme, e esse fio-condutor é a própria vida de Petra.
O argumento central levantado pelo roteiro é a divisão da sociedade brasileira, segundo a diretora, ocasionada da eleição de 2014 a partir da qual as diferenças de programa político entre setores da sociedade brasileira se tornam irreconciliáveis. É muito hábil a construção dessa ideia, sempre alternando entre protestos dos diferentes grupos, especialmente o momento em que conversa com o governador do DF que constrói a grade que separava os grupos durante a votação do impeachment em 2016. Ela ainda trata de mostrar algumas pistas dessa divisão nos protestos de 2013, mas de uma maneira menos moralista do que em geral tem sido feito na intelectualidade brasileira. Ela procura relacionar isso com a história da própria família, desde os avós barões da construção civil, passando pelos pais que viveram na clandestinidade durante a ditadura até ela, na geração da democracia. Insisto da centralidade maior na experiência da diretora do que da documentalização da política brasileira, pelo menos duas entrevistas com Dilma Rousseff foram realizadas para esse filme e mesmo assim, entrevistas com a mãe de Petra aparecem mais que as que Dilma deu para o filme. Evidentemente se trata em diversas medidas de uma construção narrativa da política brasileira, só que essas esferas são inseparáveis no caso de “Democracia em Vertigem”.
Por fim, no meu entendimento o que é apresentado como analítico da história recente do Brasil no filme representa de maneira aceitável o que se passou nos últimos anos no país, como qualquer outra versão, partindo de um ponto de vista específico, mas: em primeiro lugar, sendo capaz de se equilibrar sozinho, quer dizer, por mais que possam haver inúmeras divergências sobre a opinião de Petra, ela representa sua visão de maneira nítida, bem argumentada e com depoimentos diversos e representativos que corroboram com sua visão. E ainda assim, em mais de um momento a diretora coloca suas dúvidas e hesitações em tela, como na cena em que ela vai na sessão que julgou a abertura do processo de impeachment da Dilma e coloca que “achava que ela era acusada de corrupção” ou colocando que não acredita que o PT não tenha envolvimento com corrupção. Não há por parte dela a intenção de apresentar nada como um fato sólido. Eu teria feito esse filme de forma diferente? Sim! Porque a minha vida é diferente da vida da diretora, provavelmente eu sou bem mais ligado com a história do Golpe de 2016 do que Petra e além disso sou de outra parte do país, tenho outra idade, portanto outra experimentação de mundo. Isso faz o filme ficar ruim ou mentiroso? Claro que não! Digo isso porque a impressão que passa, é que as pesadas críticas feitas por muitos setores da sociedade brasileira a esse filme são especialmente sobre uma coisa que o filme não é ou sobre o que ele não diz, dando a impressão de que existe uma vontade de cada um que o documentário deveria falar exatamente aquilo que cada um e cada uma pensa, vê e lembra da história recente do Brasil.
“Democracia em Vertigem” é um filme pessoal, intenso, sensível, que pode ser mais ou menos relacionável e por causa disso é extremamente humano.
7.5