Crítica | Perdi Meu Corpo
Abordar um tema delicado como a solidão de forma verdadeira é algo naturalmente complicado. tratar sobre esse processo de genuína tristeza e versar sobre auto-descobrimento de forma transparente e humana, através de visuais inanimados, talvez seja ainda mais arriscado, tanto que não existem muitos filmes como este.
Diferente dos filmes populares do gênero dito como infantil, que visam atingir a maior abrangência de idade possível, filmes como “Perdi Meu Corpo”, ou o ótimo “Anomalisa”, restringem seu público por sua maturidade e pelo sentimentalismo perturbador de seu próprio roteiro. Fazem questão que seu visual (nada inventivo ou extraordinário) se torne mais uma arma evocativa de sentimentos do que o destaque em si. O principal cerne sim é sua narrativa, crueza e urgência para tratar de certas temáticas. Aqui, mesmo que de forma sútil e lenta, sobre a inexorável batalha humana entre comodismo e a busca pela libertação de si mesmo.
A primeira cena do filme em questão exibe uma mosca sendo lentamente alcançada por uma poça de sangue e não, Jérémy Clapin e Guillaume Laurant - que amam contar suas histórias através de simbolismos (“Amélie Poulain”) - não fazem questão de esconder fatos ou cair numa fórmula extremamente simplória ao fazer do filme uma simples busca de uma mão pelo seu corpo com algumas lições aqui ou ali. São dois curtos segundos que voltariam com um peso gigantesco a nos visitar. Os dois escritores conseguem estabelecer o rumo a ser seguido pelo filme nos próximos 2 minutos e a partir disso há um universo a ser descoberto e explorado. O universo de Naoufel. Existem metáforas para tudo aqui, e também por isso, embora o impacto germinado por um primeiro contato seja devastador, belo, reflexivo e singular, há muito que se observar e se sentir em uma futura revisita ao filme.
O valor de retorno de “Perdi Meu Corpo” cresce exponencialmente conforme sua delicadeza se torna mais clara a cada devaneio sobre ele.
A maneira com que a busca por novos sons - coisa que o jovem era fascinado durante sua infância - perde o sentido após o falecimento de seus pais. A inevitabilidade da vida em impor a sensação de falta de controle. Seu inexplicável ímpeto de nos trazer memórias do passado que encadeiam nosso futuro através de uma mosca a qual Naoufel tenta dominar com as mãos, que não consegue pegá-la pois “a mosca pode ver tudo”, e escuta de seu pai dizer como resposta “mire onde ela não espera, ela não pode adivinhar onde você vai mirar”.
No que tange a esses detalhes, cabe a quem assiste internalizá-los conforme seu entendimento, mas sim, há muita beleza implícita a ser procurada. A sequência seguinte trata-se da introdução da mão ao público. Equivalente a “mãozinha” da Família Adams, ela, enquanto aprende a dar seus primeiros “passos”, busca escapar de uma sala de hospital. Métodos simples, porém eficientes, nos fazem automaticamente se importar com ela. O ângulo baixo das câmeras que a acompanham, por vezes grudadas ao chão, enquadrada de modo fechado e sempre próximo a ela criam esse tal senso de vulnerabilidade quanto ao mundo real. Em seu primeiro momento fora de um saco, enquanto engatinha, nos é mostrado seu sangue e fica claro de forma subentendida que apesar dos apesares, ela pode se machucar. Tais mecanismos são essenciais e são tão bem trabalhados que esquecemos que a mão não escuta ou vê, mas apenas podemos imaginar que sim, como na aterrorizante cena com ratos, que estes parecem como monstros, da mesma maneira que o barulho do metrô é quase ensurdecedor. A mão de fato só sente, mas eis a mágica do cinema, como o próprio diretor diz.
Isso nos leva direto ao personagem principal. Muito do encanto pela odisseia da mão se faz por quem ela busca. O jovem, que veio a se tornar um mero entregador de pizza, vive com uma família adotiva completamente detestável, mesmo que ele nunca ateste os desprezar. Naoufel era um jovem brilhante e sensível porém imposto a se conformar com o que tem por simplesmente não ver mais beleza na vida, e não teria como ser diferente nesse caso. Ele se tornou alguém tão solitário e frustrado, constantemente se sentido invisível que quando recebeu o menor sinal de atenção e afeto possível mudou completamente sua vida, e entre nuances de genialidade e comportamentos invasivos e assustadores, nos são mostradas camadas de alguém completamente machucado pela vida que não merece mais sofrer, o que dosa com precaução nosso julgamento sobre seus atos.
Ironicamente, o brilho em sua vida não retorna através de nenhuma forma física, e sim através do som de uma voz e de um sentimentalismo não usual através de uma conversa por interfone. O mesmo som que dita as principais sensações dele e nossas durante o filme, pois a trilha sonora original é fascinante e cheia de texturas. Sons, cores, sensações, lembranças. Tudo é composto de forma quase metódica até pairarmos sobre os últimos 10 minutos de filme. 10 dos minutos mais lindos que já vi.
A mesma mão que Naoufel usava para segurar seu microfone e gravar a beleza da vida sob seus ouvidos e que tentava dominar uma mosca desde pequeno - que consequentemente o trouxe muita dor - busca impetuosamente, como seu passado, através de qualquer meio, retornar ao seu corpo, mas ele já não é mais o mesmo. Quando ela o alcança, em um singelo movimento enquanto dorme, Naoufel a rejeita. A vida é essencialmente uma vastidão de incertezas, e ai que dizem que mora sua beleza.
Marcado por ela, antes se achando incapaz de mirar onde ela não poderia prever, o protagonista de sua própria vida não volta achar sons ou harmonia em um relacionamento ou no seu passado. De fato, as coisas que nos marcam ou pessoas por quem agimos não define quem somos, embora ajude a compor quem momentaneamente nos tornamos. Naoufel afirma, durante um lindo e sincero diálogo com Gabrielle, que não acredita que consiga escapar de seu destino, a não ser que faça algo louco e irracional.