revisitando Corra! (2017)
NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS PROBLEMAS
Filme de Jordan Peele oferece uma renovação, mas ainda carece de refinamento por parte de seu diretor
Igualmente importante à construção de repertório, ao ato de assistir filmes, está o refinamento deste repertório, o colocar em cheque os estudos realizados entre a primeira assistida e a revisita, o colocar em dialética a própria posição e memória sobre certo filme. Quando vi Corra! pela primeira vez, em uma cabine de imprensa muito antes de ter qualquer ideia do que de fato é crítica de cinema, o impacto foi grande. Desde então, revi o filme algumas vezes ao longo dos anos, mas nenhuma revisão foi tão importante como esta última, bons três mil filmes desde o meu primeiro contato com a estreia de Jordan Peele.
E com a maior parte de uma década já passada, é possível também analisar a importância do contexto: lançado no primeiro ano da administração Trump e poucos meses depois do fiasco envolvendo La La Land (2016) e Moonlight (2016), Corra! parecia estar no centro de uma discussão que envolvia esta renovação de perspectiva em Hollywood. Grande trunfo do filme talvez seja justamente (e se Peele viu isso, foi de fato visionário) fazer isso ao nos colocar nos olhos de Chris: vemos o que ele vê (os planos subjetivos), sentimos o que ele sente (a atmosfera de costume que vira estranhamento que vira medo) e, inclusive, agimos como ele age (a catarse final, uma subversão dentro da própria mitologia do filme e do gênero em si).
Em conceito, é um filme bem sucedido: o discurso é óbvio, mas naquela época não era, e Peele faz questão de evidenciá-lo com a linguagem.
O que me pega nessa revisão, no entanto, é uma falta de refinamento do próprio diretor ao lidar com essa linguagem. O paralelo com Janela Indiscreta (1954) é bem óbvio, mas ao invés de ver pela janela, o fotógrafo está dentro da casa: Chris é um turista e uma atração, representa nossos olhos na tela, mas também é o ponto focal. Uma pena, então, que o jogo de contraplano seja tão fraco: Peele não consegue dar caráter de ponto de vista à maioria dos planos que envolvem o que veem os olhos de Kaluuya (este, outro grande trunfo do filme), os cortes são abruptos e não há tempo ou enquadramento para que o que se vê possua esse caráter voyeurístico.
À exemplo, sempre que o vemos observando algo, a “mancha” já está estabelecida: o jardineiro correndo em sua direção, a empregada arrumando o cabelo com um olhar macabro, os brancos em atitudes histriônicas. Talvez Peele pise em território de Argento? Em uma maior caricatura do que é observado?
Nesse sentido, é um filme que quer se construir pela relação sensorial do protagonista, mas que acaba se construindo de maneira externa a ele na prática: a cena dele subindo as escadas e todos parando, ou até mesmo o sketch do amigo na delegacia, momentos que tiram o filme dos olhos de Chris em prol de efeitos mais diretos. E estes até funcionam (existe tensão e existe humor), mas a sensação é de um grande filme que não é "filmado" de maneira ideal?
Tenho refletido muito sobre o processo de filmagem, de organizar a cena em frente a câmera, mas também de saber onde e como posicioná-la. A impressão é que as cenas de Corra! tem energias próprias (algumas leves, outras dramáticas, outras tensas) dentro da ideia geral (o processo que vai do costume ao medo), mas também falta algo que as costure, uma ideia formal mais rigorosa, que dê a cada cena a abordagem que elas precisem. Na famosa cena da hipnose, por exemplo, a conversa é densa e exaustiva, e ambos os atores atuam com gestos e olhares, mas o filme parece afobado em evidenciá-los, cortando e recortando os planos em um 8-4-2 que poderia muito bem ser um 2. Nesse sentido, Peele foi mais para o Shyamalanismo (ao menos, aquele pós-Dama na Água) que para o Hitchcockianismo, mais para uma abordagem que aponta para o histrionismo ao invés de encontrar as manchas de forma gradual.
O plano da chegada na casa, por outro lado, me parece talvez o melhor de todo o filme: ao afastar a câmera e revelar o olhar do jardineiro (outro plano Shyamalanesco, similar ao que inicia A Vila), fica claro que algo estranho vai ocorrer, mas cabe a nós passear o olhar pelo plano em busca de qualquer coisa errada em uma cena tão calorosa. De mesmo modo, as interações entre Chris e Rose tem uma troca de energia que chega a ser saborosa, algo que infelizmente Peele não abordou em seus longas seguintes.
Mas estes apontamentos não impedem o filme destes prazeres mais diretos, e que, nesta elucidativa revisão, não me fazem desgostar dele. Pelo contrário, acho que suas virtudes estão mais visíveis, mesmo que também suas arestas estejam um tanto mais expostas. Uma pena então que Peele tenha gastado um texto tão interessante quando ainda estava tentando encontrar sua voz como diretor?
Talvez sim, talvez não, Corra! foi um gigantesco sucesso e um dos raros filmes que merece a alcunha de "filme importante". Caso sua carreira vingue (e, três filmes adentro, acho que os sinais são positivos), talvez no futuro dê para olhar para Corra! como um interessante ponto de partida, um diretor que tentou dar uma nova perspectiva sobre um gênero e um debate, e o fez de maneira ambiciosa. Que ele poderia ter mergulhado mais a fundo no Hitchcockianismo (ou pender de vez para o Shyamalanismo?), disso eu vou guardar um tanto de curiosidade que, infelizmente, jamais será saciada.