Crítica | Death Note
Além de toda a premissa intrigante, de toda a trama complexa, e de todas as discussões filosóficas que traz, o mais incrível de “Death Note” é justamente sua auto-consciência.
Lançado em meados dos anos 2000, no auge do movimento Emo e produto de uma geração de crianças e adolescentes cientes da podridão do mundo (internet), a série de anime dirigida por Tetsuro Araki, e baseada no mangá de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata, é uma representação perfeita de algo que nem podemos chamar de emoção, e sim sensação. Algo que não chega a ser angústia, ou ansiedade, mas um misto que deixou a todos apreensivos em uma era de desenvolvimento tecnológico massivo que, ao mesmo tempo que nos conectava ao mundo, nos isolava dele. Mesmo sendo genuinamente Japonês (consigo imaginar Kiyoshi Kurosawa fazendo maravilhas em um filme), “Death Note” foi um fenômeno cultural que reflete perfeitamente o Ocidente.
Quando li o mangá pela primeira vez, aos 15 anos, achava que era a melhor coisa já escrita. Hoje, com 25, assisti o anime pela primeira vez e posso dizer que não é (sei muito mais do que sabia aos 15, e muito menos do que espero saber aos 26), mas com certeza figura entre um dos trabalhos mais inteligentes da cultura Pop do século 21. Não apenas por seu conteúdo, mas em como usa a forma para comunicá-lo, pois se o mangá é mais cínico e distante, o anime tem um quê quase de sátira, como se visse tudo de fora, como se entendesse perfeitamente não apenas o que é, mas como seria percebido por todos. A trilha, que chega a lembrar a de “28 Dias Depois” e tudo que Alex Garland faria no futuro, é a representação dessa inquietação aborrecida, com guitarras se misturando à uma música eletrônica decadente, provocando tensão e antecipação, mas sempre indicando (ou piscando mesmo) para o inevitável e trágico fim - não só de Light, mas da esperança de um mundo melhor.
Porque por mais que seus ideais sejam perdidos - mais sobre isso a frente -, é inegável que o objetivo final de Light era criar esse mundo, o que novamente rima com toda a estilização aborrescente: o motivo de muitos não torcerem por ele (e eu reverti minha torcida ao assistir a série), além da questão ética da coisa, é que sempre existiu um complexo de narciso, de ego, um eu no meio de sua ilusão de que o que fazia era para todos. “Serei o Deus do novo mundo”, uma frase que evidencia sua impulsão de matar quem o desafia, facilmente desviando de seus ideais iniciais. Se Light assumisse o “fardo” de limpar o mundo, e apenas aceitasse que seria o vilão e não o herói, poderia morrer como Batman e não Coringa, e talvez seus atos não fossem lentamente esquecidos e o que fez de bem revertido para o que havia de mal - como o mangá mostra.
Ou talvez não houvesse jeito de mudar o mundo, talvez seja da natureza do ser humano ferir o outro, talvez seja nosso destino apodrecer como sociedade. Nisso, entra Ryuk, que inicialmente é colocado como paralelo de Light no mundo dos Shinigami, mas que logo surge como um mero observador - e seu design punk, com os olhos arregalados (ou cheirados), me deixa satisfeito com o que proponho neste parágrafo e no último. Entediado e indiferente, se envolvendo apenas perante o próprio entretenimento, Ryuk é outra parte da sensação coletiva que fez nascer a obra, mas serve também como uma espécie de agente de Deus. Um Deus alienado, inerte e que não prega nada exceto a morte.
E considero genial que esse agente sirva como os nossos olhos na história, tema esse que se torna recorrente sendo que “Death Note” é também sobre aparências, algo que a encenação reforça ao mostrar olhares e sugestões de maneira tão essencial: reconhecemos Light e Kira pelo olhar, L parece pensar com os olhos, Misa são os olhos de Kira, é enxergando Ryuk que Near descobre estar certo, há sempre alguém olhando por suas costas, há sempre uma câmera que o deixa exposto para esse mundo onde é impossível fugir dos olhares de todos. E perante a isso, precisam os personagens se disfarçarem, tanto visualmente ou apenas escondendo suas identidades, pretender serem de um jeito quando são de outro. Quando Light abdica de suas memórias, ele acredita não apenas na própria índole - sequencia que evidencia o caderno como uma espécie de O Um Anel -, mas que é tão perfeito que seu simples eu vai desfazer as desconfianças de todos, enquanto seu escolhido eu trama para retomar o controle do corpo que dividem. Nesse mundo novo, estamos sempre sendo observados, e isso sempre irá revelar o que de mais obscuro temos.
Além disso, há algo de satisfatório em constatar que estes olhos que observam, também procuram respostas: no início, Ryuk olhou para o mundo humano como salvação do próprio tédio, Light olhava pela janela entediado com a vida quando primeiro viu o caderno, enquanto no fim, Ryuk tem de olhar para o mundo que “amaldiçoou” sabendo que nunca terá tamanha diversão novamente, enquanto Light olha para o céu esperando haver algo, mesmo sabendo que não há.
A série conquista também pela trama de suspense e a dinâmica de gato e rato, deliciosas de se acompanhar, ao ponto de que mesmo sabendo o que aconteceria, o frio na espinha não apenas retorna, mas me faz questionar se tudo aconteceria da mesma forma que me lembrava. Mas é a forma que esses elementos comunicam os temas que os impedem de serem meras espertezas de roteiro (ou nome, pra quem leu/assistiu a obra seguinte da dupla): Light e L travam um embate sobre justiça, mas que surge cinza, e não uma representação óbvia e moralista do Yin-yang. L pode ser um instrumento da justiça (a tradicional), mas o que parece lhe satisfazer é o entretenimento vindo de um caso aparentemente impossível (e que seu raciocínio genial seja feito entendível é um mérito gigantesco de Ohba), ao suspeitar de Light ele parece estar em uma linha tênue entre querer estar certo, mas também preservar a única amizade que teve na vida - e toda a caracterização é perfeita, é como se aquela criatura existisse em um meio termo de plausível e mítico. Sua morte no colo de Kira, que logo depois chora como Light e até chega a sentir a falta do rival, é considerado por muitos o final ideal da série, mas acho que preciso discordar.
Antes, para quem você torceu? Se a resposta for L, a chance de decepção é de 74%, mas então preciso sugerir que o propósito foi cumprido: por mais gênio que seja, L lutava contra o desconhecido, o homem contra a morte, o homem contra Deus. Porém, L jamais foi um homem egoísta, e a vitória de Near surge como seu último trunfo (como Light aponta). E chega a ser poético: se L morre nas mãos de um Shinigami apaixonado, Light morre nas mãos de outro indiferente - no mangá, pelo menos. E apesar de preferir essa resolução, ainda mais por ela mostrar o quão inútil é tudo ao revelar que quem usa o Death Note não vai para céu ou inferno porque estes não existem, há um momento lindo de tão depressivo no final do anime: Kira, acabado e sem esperanças, cruza com um jovem Light, cheio de ideias e ideais - e percebam a sutileza do trabalho de animação de mostrar esses estados conflitantes por expressões desenhadas. No fim, a morte de Light no anime é mais pacífica, mais romântica, menos cética, e mais condizente com a abordagem escolhida durante toda a série.
E ainda há mais presente nos curtos 37 episódios: se “Evangelion” alude para uma ideia de brincar de Deus, mas nunca o faz de verdade, “Death Note” bota em cheque a benevolência de ter poder ilimitado sobre a vida dos outros. Desde a devoção de Misa à Light (de novo, o mangá tem uma resolução perfeita nesse sentido), à resposta do público, que substitui a violência natural por uma teleguiada e direcionada àqueles que discordam de seu novo Deus. Pouco interessados eles estão em fazer o bem, mas sim sobreviver à seu julgamento. O que era pra ser altruísmo se torna egoísmo, o que podia ser evolução se torna alienação, o que deveria ser coletivo se torna individualismo. A internet, a tecnologia, a união do mundo por seu distanciamento.
Independente do final que você escolha, ou conheça, todos aludem para a mesma coisa: se Deus existe, você deveria considerar a possibilidade de que ele não gosta de você (existe algum paralelo melhor??). No fim não há salvação, e estamos todos #chateados com isso.