Crítica | Bacurau
Bacurau é surpreendente.
O terceiro longa-metragem do pernambucano Kleber Mendonça Filho, dessa vez em parceria com Juliano Dornelles, é uma adição ainda melhor do que o imaginado para a sua filmografia. Vindo após “Som ao Redor” e “Aquarius”, excelentes filmes com temáticas semelhantes: a classe média e as disputas urbanas em um Brasil passando por processos de ascensão social. E por mais que a expectativa era ver mais uma abordagem do diretor nessa temática, “Bacurau” aponta para outro lado. Dessa vez, o olhar parte de uma cidade fictícia no interior de Pernambuco em um futuro de temporalidade incerta.
Kleber buscou o que há de mais tradicional no cinema crítico brasileiro, ao mesmo tempo em que trouxe alguns gêneros clássicos de Hollywood. Misturando o olhar para o interior sertanejo do Cinema Novo com os modernos westerns de Quentin Tarantino e, por isso, “Bacurau” constitui de uma nova cinematografia brasileira que olha para o país ao mesmo tempo em que é globalmente conectada.
Quero começar falando do filme de trás para frente, pois quando acaba a projeção sobem os primeiros créditos, contando que “Bacurau” empregou em torno de 800 pessoas durante sua produção. Esse destaque é fundamental em um filme que ganhou Prêmio do Júri em Cannes, vai rodar os festivais do mundo representando o Brasil no momento em que o cinema brasileiro vê dias de terror, com cortes em repasse e ameaça de fechamento das instituições de fomento do audiovisual. Sem coincidências, a narrativa se desenvolve em um país quase distópico, poucas informações são dadas sobre essa situação, mas é possível compreender que é um país com forte exaltação da violência na mídia que mostra execuções públicas na programação diária. E também que é possível instituir recompensas pela morte de outras pessoas. Desde o começo percebemos que Bacurau é uma cidade que resiste a mudanças e disputas contra ela. Um símbolo à resistência que o Brasil precisar fazer nesses tempos.
Aliás, se, até então, os filmes de Kleber Mendonça tinham o fantasma da escravidão sempre presente na classe média brasileira, em “Bacurau” ele se interessou em mostrar o fantasma colonialista que ronda o país. E faz isso de uma maneira bem peculiar, porque o filme é sobre um grupo de cidadãos dos Estados Unidos e Europa que vêm ao Brasil para matar pessoas em uma espécie de safári humano em que cada abate vale pontos. Para fazer isso precisam achar algum lugar pequeno e isolado do resto mundo, para que não se note o desaparecimento das pessoas, e o lugar escolhido é o vilarejo de Bacurau. O grupo de estrangeiros conta com a ajuda de uma dupla de brasileiros, do sudeste, que descreve sua região como “uma região mais rica, somos mais parecidos com vocês”, para os estrangeiros, que ironizam. Claro que essa mudança de temática do diretor reflete uma mudança no país em que o colonialismo se tornou agenda do governo, aliás só é possível classificar o filme como quase (e não totalmente) distópico porque ele mostra um país que é pautado na violência e na cultura de armas acima da sociedade.
“Bacurau” é uma tese para o país e o mundo em que ele foi lançado.
E a cidade fictícia que dá o nome ao filme representa a união e a força de um local construído na resistência. O vilarejo que na verdade é formado por apenas uma rua tem no seu centro um prédio bonito de pedra, o “Museu Histórico de Bacurau”, que por mais que só seja apresentado a nós no último terço de filme é mencionado recorrentemente e serve como o orgulho de sua população. Aliás, a mistura de atores profissionais e amadores feita pela produção é um dos lugares que o filme tira força, porque os habitantes de Bacurau formam uma mescla que sintetiza a população brasileira. O professor Plínio (Wilson Rabelo), o matador Pacote/Acácio (Thomas Aquino), o misterioso Damiano (Carlos Francisco) e a médica Domingas, interpretada magistralmente por Sônia Braga. Esses e mais outros personagens constroem a empoderada população que defende seu território. E é de cada um deles que sai um pouco da resistência do vilarejo ao tempo e aos invasores.
Além do sempre estimulante visual já habitual do cinema nordestino, o trabalho de direção de arte de Thales Junqueira, que sem dúvida é um grande nome na função no cinema nacional, é excelente e ajuda a construir a atmosfera magnética, que em nenhum momento deixa de ser interessante e imersiva. Isso se dá também porque podemos testemunhar o dia a dia da cidade. Na primeira parte do filme, na cena em que o odiado prefeito Tony Junior que dificultou o acesso de Bacurau a água, que ficou dependente de um caminhão pipa para seu abastecimento, vai visitar a cidade, temos uma espécie de “posto de guarda” na estrada, dali sai a informação que rapidamente chega na cidade da chegada do prefeito. E vemos em poucos minutos uma feira sendo desmontada para que a cidade ficasse vazia para a chegada de Tony Junior que vai pedir votos e em troca deixa alguns livros e mantimentos na cidade. Essa cena anuncia a maneira que a cidade é conectada e rápida na ação para se proteger de quem tenta prejudicar seu território.
Quando, no final do filme, vemos o interior do Museu de Bacurau é possível entender o significado que tem aquela cidade e aquele prédio dentro dela. Vemos recortes de jornais e outros artefatos da memória do vilarejo enquanto um lugar que já resistiu a outras mudanças e invasões de fora. Ali podemos entender porque, na cena em que estrangeiros chegam na cidade, eles são perguntados se vieram para ver o museu, é justamente dali, e da escola, que a população de Bacurau se organiza para resistir contra seus invasores.
“Bacurau” é um filme que surpreende, causa estranheza e, segundo o diretor mexicano Alejando Inarritu, é uma guacamole de gêneros. Mas eu espero que esse filme cause muito mais, porque no Brasil de hoje, é na população de Bacurau, nas histórias de resistência e na educação que o país precisa encontrar força para combater a agenda de violência e colonialismo que está tentando ser colocada em prática.