Crítica | Raia 4
Quem lê meus textos no Outra Hora, especialmente os mais recentes, talvez perceba uma insistência em comentar sobre como o gênero coming of age, traduzido literalmente como vinda da idade, é um dos mais surpreendentes do século 21. Desde os quase clássicos instantâneos como “Boyhood” e “Moonlight”, ao premiado “Lady Bird”, ao subestimado “The Edge of Seventeen”, ao cult “As Vantagens de Ser Invisível”, ao esnobado “Califórnia”, ao polêmico “Azul É A Cor Mais Quente”, não é preciso muito esforço para ver a quantidade de obras significativas que o gênero trouxe nos anos recentes.
Porém, há algo em “Raia 4”, primeiro longa da carreira de Emiliano Cunha, apresentada no Festival de Cinema de Gramado, que o diferencia dos citados acima: O que acontece quando o horizonte não é tão cheio de vida?
Roteirizado e dirigido por Emiliano, o filme mostra a jovem pré-adolescente Amanda no meio da preparação para um torneio sul-brasileiro de natação e, também, no meio da descoberta da própria sexualidade, se atraindo por uma colega da equipe que já está envolvida com outro menino.
Apesar de ser um tema quase necessário em filmes deste tipo - dos citados acima, todos abordam a sexualidade -, “Raia 4” tem a difícil missão de lidar com personagens mais jovens, em um ambiente onde seus corpos ficam naturalmente mais expostos, com um tom consideravelmente menos alegre e jovial. Emiliano, que fora atleta e professor de natação quando jovem, preferiu utilizar de atletas reais para compor seu elenco, justamente para conferir realismo às muitas cenas de treino e dar naturalidade às metáforas e analogias que a natação passa em relação à história. Competitividade, exposição, descoberta. Desde os planos mais sugestivos - como o inicial, que mostra a jovem Amanda em posição fetal na piscina, ou outro envolvendo a mesma em meio a sombras - aos mais simples, onde todos estão apenas nadando. A construção daquele ambiente é imersiva e natural, pois aqueles jovens estão onde se sentem confortáveis, algo necessário para um filme tão desconfortável. E por mais que, por vezes, a falta de experiência deles seja um problema quanto à suas interpretações gerando falas ensaiadas, é inevitável não fazer um contraponto caso ele optasse por atores que teriam de aprender a nadar, o que iria conferir uma realidade muito inferior àquela desejada pelo cineasta.
Afinal, se “Raia 4” pudesse ser eficientemente comparado à qualquer dos exemplos lá em cima, seria a trivialidade de “Boyhood” a melhor escolha, pois pouco, de fato, acontece aqui se não a vida real. Não é um filme eventivo, e aposta em poucos momentos climáticos, raramente flutuando para águas mais perigosas, sempre cuidando para não passar do limite ético envolvendo seu elenco. E por mais evocativa que algumas das muitas experiências de Amanda possam ser, os noventa minutos são tudo menos divertidos, sempre apresentados com uma melancolia subjacente, presente tanto na bela fotografia com uma paleta escurecida, como na trilha sonora que provoca uma tensão desconcertante em momentos aparentemente inofensivos, conferindo um peso a narrativa semelhante à “Moonlight”, que também relaciona a jornada pessoal de seu protagonista com as águas.
Os espectadores casuais irão claramente se enfastiar, pois estarão assistindo ao equivalente de um filme família caso fosse concebido pelo grego Yorgos Lanthimos.
Fato comprovado pelas próprias relações interpessoais apresentadas por Amanda e seus pais, todos com dificuldades claras de se relacionar mesmo com aqueles que mais amam, assim como as muitas pessoas que povoavam o hotel de “O Lagosta”. E não é que não tentem, mas há sempre algo de não-encaixe presente em suas relações, o que acaba tornando momentos que deveriam ser felizes e reconfortantes para a maioria dos jovens em cenas secas e difíceis de se assistir. Talvez muito por conta da visão de Amanda sobre o mundo, esta que, interpretada de forma eficaz pela novata e promissora Brídia Moni, acaba nunca entendendo exatamente o que fazer da nova fase da vida. E é aí que entra minha principal análise sobre o longa (e trago leves spoilers a seguir):
Seu interesse por Priscila, bem interpretada pela extrovertida Kethelen Guadagnini, me parece mais um interesse pelo próprio corpo, que ela enxerga em uma menina mais madura, sexualmente, que ela própria. A mãe, que ficou feliz com a primeira menstruação da filha, inclusive elogia como a jovem já é quase uma adulta, e Amanda não a vê apenas como uma competidora nas águas, as quais nunca a trazem conforto, mas como algo que ainda não é, também invejando sua popularidade com os outros meninos. E falando sobre sua relação com as piscinas, é interessante analisar como Amanda está chegando em uma das primeiras grandes barreiras de atletas jovens, quando preferem curtir as pequenas coisas da vida ao invés de se dedicarem inteiramente a um esporte tão desgastante como a natação. Seus treinos parecem robóticos, como se ela os fizesse apenas porque, aparentemente, eles estão presentes em sua vida, afinal, ela ainda nem sabe o que quer da mesma.
E, por mais que muito possa ser tirado perante sua situação familiar, há uma falta de clareza quanto à verdadeira índole da menina que acaba por não justificar muitas de suas ações, o que deve funcionar apenas dependendo da sua interpretação sobre o filme.
Assim, ao finalizar o longa externalizando a inquietação e dificuldade de Amanda de aceitar e encontrar a si mesma, Emiliano cria um retrato triste e isolado da pré-adolescência que, por mais que não seja algo prazeroso de assistir e que torne o curto tempo de duração em uma verdadeira prova de resistência para espectadores menos interessados, não deixa de ser a realidade de muitos jovens que crescem sem o mesmo brilho no olhar que outros de seus colegas.