Crítica | Fé Corrompida
Na tradução do título “First Reformed” para a sua versão em português “Fé Corrompida”, muito se perdeu.
A palavra “reformed” / “protestante”, presente no título original, remete não somente a religiosidade inicial do protagonista mas também ao processo de desconstrução que ele sofre ao longo do filme. O protesto é o que guia toda a trama. “First Reformed” ou “Fé Corrompida” é sobre o questionamento, a discordância e suas poderosas consequências.
Sujeito a tomar conta de uma igreja que já se tornou motivo de piada por ser pouco popular (inclusive recebendo o apelido de “Loja de Lembrancinhas” devido aos souvenirs que são vendidos lá), o padre Toller leva uma vida dedicada à sua fé e aos pequenos cuidados do santuário. É lá, na Primeira Igreja Protestante de Snowbridge, Nova Iorque, que ele passa seus dias: rezando a missa de dia e bebendo para afogar as angústias do seu passado à noite. Até que um encontro com um casal de ativistas ambientais faz com que a sua fé (nas instituições, nas suas relações, nas pessoas) seja confrontada.
O embate entre Toller (interpretado magistralmente por Ethan Hawke) e Michael, no primeiro ato, é o que estabelece a dualidade da rota temática que o filme se propõe a seguir: o desespero causado pela razão e a esperança causada pela fé devem coexistir. Nenhum dos dois pode prevalecer completamente e nenhum pode desaparecer.
Construído através de uma narrativa simples, mas com simbologias complexas, que entrelaçam tópicos relacionados à sustentabilidade e à religião de forma elegante, mas desconcertante - “First Reformed” é tudo que “Mother” queria ser.
A base da fé que integra a religião protestante é a de que Deus só se comunica através de sua palavra e que o conhecimento que outros acreditam possuir sobre ele jamais estará completo. Aqui a palavra, presente na Bíblia e interpretada pelo padre, é sempre soberana. Spoilers a seguir.
Durante o desenrolar da história que se seguiu após o suicídio de Michael, o militante a favor de causas ambientais, o filme me levou a crer que Toller estava começando a incorporar a personalidade do falecido ativista. Mas o final foi incisivo em me contestar. Toller não se tornava Michael. Toller se tornava a própria natureza.
Essa comparação fica ainda mais clara quando percebemos que o sofrimento de Toller espelha e rima com o da natureza. A sua dor - progressiva, danosa e incessante - o torna um homem mais fraco, esgotado, tóxico, agressivo e, por fim, autodestrutivo.
A partir do momento em que Toller passa a cogitar uma ideia de Deus que, de fato, “está em cada pedaço da terra”, ele vê a necessidade de também conduzir a palavra (sempre soberana) dela. E este é um fato que deveria estar nítido desde o princípio visto que a humanidade faz parte da natureza: veio dela e a ela, retornará. Mas, em algum lugar ao longo do caminho, esquecemos que a ruína da natureza também é a nossa. E aí precisamos recorrer a subterfúgios metafóricos morais, políticos e religiosos para sermos capazes de lembrar da simples premissa de que cuidar do outro também é cuidar de nós mesmos.
A inserção das sequências de escrita no diário remetem a um fim iminente. A morte espreita os passos do protagonista e essa carga terminal se intensifica a cada gole de uísque ou a cada rejeito de sangue que escapa do corpo do padre. Aprendemos é que a morte é um processo.
Mary Mensana, a personagem grávida que é um dos pontos centrais de toda a narrativa, possui simbologias no seu próprio nome. A primeira, mais clara, é “Mary”, Maria, a mãe. A segunda está em seu sobrenome que, não por acaso, evoca uma famosa citação latina de Romano Juvenal “Mens sana in corpore sano”, que significa “uma mente sã em um corpo são”. Mary é a personagem mais próxima do que alguém livre de defeitos deve ser. Se mostrando equilibrada em cada um dos abalos que enfrenta, ela se prova como uma personagem pura, imaculada, destituída das chagas que abalam a sociedade. Um ponto de luz na escuridão.
As barras pretas emoldurando as cenas nos prensam. A fotografia, executada com maestria por Alexander Dynan, exige nossa atenção. O formato de quadro escolhido (Academy Ratio, 1:375:1, mais quadrado que aquele a qual estamos habituados) incentiva nossos olhos a focalizar sempre no centro da tela. Além disso, a trama também vai encurralando o protagonista, que se encontra sempre esmagado, seja entre duas crenças (como dito pelo próprio, entre o desespero e a fé?) ou até mesmo fisicamente (o momento mais marcante sendo em uma lancheria, quando ele se vê quase prensado entre a parede e Balq, o empresário representante dos interesses capitalistas que ele passa a confrontar).
E quando esta disparidade cinematográfica é aliada ao escopo temático muito bem determinado no roteiro (não há qualquer tipo de divagação ou questionamento que se desvie dos assuntos propostos desde o início), Paul Schrader impede a nossa fuga.
Ao mesmo tempo em que o encerramento abrupto é a imagem de um final ambíguo, o filme também é claro: Toller sofre de um câncer terminal. Ele tem, devido a sua falta de cuidado, uma data de vencimento - assim como o planeta.