Crítica | Cisne Negro

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Do que é feito um clássico? Nos últimos 10 anos talvez essa palavra tenha sido usada como nunca, com a possibilidade de acessarmos qualquer filme em uma questão de segundos muitos filmes canônicos passaram a ser questionados enquanto produções pouco apreciadas no passado foram alçadas a esse status. Cada um tem seus clássicos e às vezes defendemos com unhas e dentes uma obra que para nós é inigualável, inalcançável e insuperável enquanto outras podem ter relações completamente com esses filmes. Um clássico é definido assim pela capacidade em criar conexões com diferentes situações em diferentes tempos e mesmo sem um segundo a mais ou menos de duração, seu significado pode encontrar novas relações temáticas com o passar do tempo. Em 2010, Darren Aronofsky lançou “Cisne Negro”, para mim seu melhor trabalho, que hoje considero um clássico recente do cinema, a leitura que fiz nesse texto (publicado originalmente no meu blog no Medium em 2019) talvez não se aplicasse em 2010 e em 2021 já encontro significados que não via a época na história de Nina, mas o que não mudou foi a capacidade do filme de me impressionar a cada vez que assisto (outra qualidade de um clássico) e ser uma eterna referência de cinema para mim.

Em um momento que a quebra dos limites corporais humanos e um discurso incentivando auto-sacrifício em razão do triunfo individual são recorrentes no nosso cotidiano, em que é motivo de glória sacrificar a vida pessoal, abrir mão do corpo, do tempo e da felicidade para tentar atingir um grande status, em que as pessoas precisam de cursos de felicidade e ler livros para tentar aprender a se sentir bem consigo mesmas, que não basta apenas ter uma vida estável para que isso represente uma vida bem sucedida, não tem mensagem mais interessante para se passar do que a de Cisne Negro: a loucura e a destruição que é sacrificar tudo na vida por um momento. Essa é a história de Nina (Natalie Portman), uma bailarina de um corpo de balé que quer se tornar a Rainha dos Cisnes na interpretação do Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky.

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A mãe de Nina também era uma bailarina que não teve grande sucesso e vê na sua filha seu fracasso ao mesmo tempo que tenta transformar ela na grande dançarina que gostaria de ter sido. Essa obsessão é representada em uma mãe que não deixa a filha crescer, que mantém o seu quarto de infância imutado, que acompanha Nina para todo lado, que veste seu casaco e controla seus horários de dormir e acordar. Desde o momento em que Nina começa a sua jornada para virar a Rainha dos Cisnes, o filme apresenta uma dualidade entre o Cisne Negro e Cisne Branco. Nina tem todas as qualidades do Cisne Branco, a pureza e a precisão dos movimentos, que são representadas pela sua infantilidade e uma vida exclusivamente dedicada ao balé, mas que precisaria mais do que isso para fazer esse papel, precisava de sensualidade e de auto confiança, para representar os dois lados da Rainha, o Cisne Negro.

Para mostrar essa transformação que aparece Lily (Mila Kunis), ela é aquilo que Nina não é: livre. Seus movimentos de balé não são tão precisos e sempre ficam no limite entre o erro e o acerto, na primeira cena em que dança seu cabelo está solto, contrastando com os típicos coques em cenas de balé. Lily representa tudo que Nina quer e teme se transformar. E esse processo de transformação vai ocorrendo na medida em que ela passa a ser mais ativa em suas atitudes, desafiar a sua mãe, o seu mentor, diretor da peça e suas colegas, assim o Cisne Negro vai aos poucos surgindo nela. Darren Aronofsky faz questão de nos mostrar tudo isso através de espelhos, todos os momentos que vemos a personagem tendo ações que demonstram suas mudanças de personalidade e físicas que ela vai vendo em reflexos de espelhos.

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O uso dos espelhos em Cisne Negro é muito inventivo para um filme de balé, uma vez que as salas de dança comumente possuem paredes espelhadas. E sua metáfora enquanto a janela em que vemos nós mesmos, em que podemos observar nossas mudanças ao longo do tempo é fundamental para o desenvolvimento da personagem. Nina passa a ver um duplo seu, andando na rua, no metrô e no seu reflexo no espelho, um duplo que se rebela contra os seus movimentos de balé e que se liberta do cisne branco dentro dela. Ao final, quando a personagem acha que está matando Lily ao jogá-la contra um espelho e golpeá-la com um pedaço de vidro quebrado, a transformação está completa porque, na realidade, Nina está matando a si mesma e libertando o Cisne Negro para se apresentar no balé e com uma performance de tirar o fôlego que arranca aplausos da plateia, mesmo que isso tenha custado a sua vida.

Cisne Negro tem a qualidade que potencializa qualquer filme para se tornar clássico: todos os detalhes são muito bem cuidados pelo diretor, o que causa uma sensação de que para onde o espectador olha vai ter uma nova descoberta a ser feita sobre a produção. Isso engrandece esse filme, faz os momentos dele virarem ecos no cinema, cria referências e paralelos infintos com outros filmes. Pode ser observado nas cuidadosas escolhas de cores, Nina começa o filme usando branco, passa para o cinza, no clímax está de preto e morre de branco, novamente, com exceção do seu quarto, que é sempre rosa. Os planos detalhe e as cenas de dança cumprem função narrativa e visual e alternam de suaves para tensas com alguns segundos de mudança de quadro, a cena incrível que mostra a deformação da sapatilha, um paralelo da própria bailarina que vai se quebrando e se moldando para a dança. Esses elementos além de enriquecerem a narrativa, dão força ao filme e ainda mais destaque para a perfeita atuação de Natalie Portman, certamente uma das maiores do cinema.

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A jornada de Nina para apresentar o Lago dos Cisnes é semelhante a muitas histórias que vemos no nosso mundo: sacrifício, abrir mão da saúde mental e física pela performance, seja nas artes, no esporte, no entretenimento. Porque vivemos uma época de superlativos, recordes sendo quebrados em todos ambientes. No caso do balé isso ganha uma conotação mais interessante, porque fala do evento, em um momento onde quase tudo tem muita reprodutibilidade, dança ao vivo é uma das coisas que só pode ser presenciada no momento em que ela é executada e Nina literalmente se mata em nome desse momento. Por isso, Cisne Negro além de um dos melhores filmes da década é uma mensagem sobre transformação, sobre amadurecer e sobre não precisarmos nos matar por um status, um êxito, um momento.

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*Texto publicado originalmente no dia 25 de junho de 2019, com algumas alterações, no Medium.

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