Crítica | Aos pedaços (2020)
Ruy Guerra atualiza sua filmografia com um fraco suspense recheado de sombras, mas nada misterioso
Em Aos Pedaços (2020), filme com lançamento no Festival de Cinema de Gramado, Ruy Guerra explora a crise de Eurico (Emilio de Melo), um homem bígamo e paranoico casado com duas mulheres loiras muito parecidas: Anna (Christiana Ubach) e Ana (Simone Spoladore). Em um sonho, lhe é revelado que irá morrer e alguma de suas mulheres planeja matá-lo. Convencido de sua sina, Eurico mergulha em um turbilhão de medo, suspeitas, alucinações e culpa.
Através de solilóquios intensos e diálogos com Eleno (Julio Adrião), um pastor misógino que funciona como um Id (parte do inconsciente regido pelo princípio do prazer) para o protagonista, a narrativa explora os tormentos de Eurico em relação a seu destino e sua condição de homem e marido. Paralelamente, vemos um estudo das vontades e condições de mulher e esposa de Ana e Anna e suas possíveis razões para realizar (ou não) o assassinato de seu marido.
O filme se desenrola em um espaço diegético pouco definido, casas cobertas de sombras, corredores estreitos, uma ou outra cena numa praia. Esses lugares são explorados utilizando um belo preto e branco muito expressivo. As atuações seguem um estilo muito teatral, os monólogos são declamados e os diálogos são trocas intensas.
Por mais que Ruy Guerra experimente muito com a forma de contar sua história, ela se desenrola de forma bem linear. São apresentados os personagens, descobrimos a força motriz da narrativa (a morte ou não de Eurico), descobrimos as motivações deles (seção de maior duração do filme) e vemos o desfecho das suspeitas do protagonista.
Um dos principais problemas do filme tem origem nessa narrativa simples. O desfecho, que poderia ser uma das ferramentas para criar tensão, é muito simples. Eurico sobrevive, ou é morto por uma de suas esposas, ou as duas cometem o crime, ou ele que se mata. Há pouquíssimo espaço para brincar com um plot twist, coisa que Ruy insiste em fazer.
Nesse caso, a única saída para manter um engajamento com os eventos que se desenrolam é transformá-los em um evento cinematográfico por meio da encenação, como diretores como o Alfred Hitchcock são conhecidos por fazer. Sobre o sucesso dessa empreitada, Inácio Araujo desenvolveu em sua crítica do filme melhor do que eu poderia:
“Há filmes em que Ruy Guerra parece explicitamente se fazer opaco, como este. São os menos legíveis de sua desigual filmografia, no sentido de que talvez exista pouco para ver além do que se vê.”
sombras que escondem um vazio
Os belos planos, construídos em parceria com o fotógrafo Pablo Baião, são repletos de sombras que não escondem nada. A escolha de criar personagens conscientes de si que falam tudo o que pensam não casa de forma alguma com a encenação misteriosa do filme. Tudo que está acontecendo fica extremamente explícito por meio da fala e as imagens não assessoram ou ilustram em nada, somente pretendem esconder algo que já está à vista.
Esse mundo, supostamente regido por abstrações, só existe para sustentar esses personagens, estabelecer uma plataforma a partir da qual eles falam. O que parece uma escolha meio boba, uma vez que, se as falas são o elemento principal do filme, elas deveriam transbordar sobre as imagens, não partir delas. De que serve falar sobre os sentimentos dos personagens, se mal posso ver o rosto deles? Tal escolha é muito decepcionante, imagina se Dreyer tivesse tapado o rosto de Maria Falconetti, em Paixão de Joana D’arc (1928).
Para além disso, os personagens são comportados demais. Seus sentimentos são tão aflorados, são enquadrados de forma tão expressiva e são tão conscientes de seu lugar na história (tanto Eurico quanto suas esposas), mas nada fazem para fugir de suas situações, nada fazem para anarquizar suas narrativas. A perturbação que é explicitada em nada altera as ações dos personagens. O que os prende a seus lugares? O filme, pelo menos, não sabe responder.
Tal encenação cabe em um filme como O Ódio (1995), que conta a história de jovens da periferia de Paris tentando lutar contra seus destinos, pouco importando se eles vão suceder ou não. Ruy Guerra sabe contar histórias desse tipo: seu filme mais célebre, Os Fuzis (1964), constrói muito bem o personagem do Gaúcho (Átila Iório), um camioneiro que ao ver a desigualdade social em uma cidade do interior do Nordeste, decide fazer algo sobre. Como Inácio escreveu, Ruy tem uma filmografia desigual, e esse é um dos pontos baixos dela.