Crítica | Aquarius


Demorei muito para assistir à “Aquarius”, segundo trabalho de ficção do realizador brasileiro mais celebrado da atualidade.

Por qualquer motivo o deixei passar em 2016 - quando deveria ter sido indicado ao Oscar, mas foi boicotado pelo desgoverno brasileiro - e fui o atrasando desde então. No meio tempo, conferi as outras duas obras de Kleber Mendonça Filho, os ótimos “O Som Ao Redor” e “Bacurau” - este último que também deveria ter sido nosso escolhido para os prêmios da Academia em 2020 (mesmo que eu tenha gostado muito de “A Vida Invisível”) - e comecei a apreciar de forma curiosa sua forma de fazer cinema. Enquanto o último destes dois me conquistou pela imponência de sua mensagem, o primeiro é como um labirinto de temas e conceitos que revisito constantemente e que sempre oferecem novas formas de interpretá-lo.

Porém, hoje, não tenho duvida alguma sobre qual meu preferido dos três - ou melhor, meu preferido do cinema nacional nestes últimos dez anos -, pois “Aquarius” me proporcionou uma experiência que julgava tão impossível que nem ao menos a cogitava:

A Clara, de Sônia braga, me lembrou de minha mãe.

O que, também curiosamente, foi fundamental para que pudesse apreciar o filme da melhor forma possível, assim como a personagem de Sonia aprecia um bom disco de vinil que, comprado em um sebo, possui toda uma história em seu passado que, mesmo que ela desconheça, a fascina o suficiente para que a conte sempre que tem a chance - exatamente como minha mãe faz com praticamente todas suas muitas histórias de vida. Nesse sentido, o filme de Kleber é magistral ao não apenas aprofundar, mas expandir os temas presentes em “O Som Ao Redor”, pois além de um retrato da nossa sociedade atual e da vida em si, “Aquarius” denota uma maxima as vezes esquecida da arte: duas pessoas jamais terão a mesma experiencia ao consumir-la e isso, para que entendamos quem é Clara, é imprescindivelmente importante.

Logo em sua primeira sequência, ainda jovem e na pele de Bárbara Colen (que cativa mesmo com pouco tempo em tela), temos um vislumbre de sua personalidade. Brilhantemente nomeando o primeiro dos três capítulos de “O Cabelo de Clara”, Kleber concebe o roteiro de forma semelhante à seu filme anterior, mas com uma força propulsora que toma forma justamente em sua personagem principal e seu visual Elis Regina (que minha mãe também usava quando jovem) que, além de nos dar uma pista - que logo é confirmada, mas não especificada até outro momento chave da narrativa - sobre seu passado, comunica seu jeito de levar a vida. É ela quem apresenta músicas novas aos amigos, é ela quem comanda as homenagens para a tia Lucia (Thaia Perez) e, mesmo quando não toma as ações, o simples olhar de amor (e desejo) do marido em sua direção nos contam muito sobre quem, e como, ela é. Uma mulher forte, decidida, dona da própria vida e, principalmente, genuinamente afetuosa - assim como, bem vocês entenderam.

Uma intérprete inferior jamais seria capaz de captar todas as nuances da personagem e o fato de Sônia Braga nunca ter tido filhos e conseguir passar apenas com o olhar todo o amor que Clara nutre pelos seus apenas atestam a competência de uma das grandes atrizes do nosso cinema. Tomando conta da personagem a partir do capítulo dois, inteligentemente nomeado de “O Amor de Clara”, Sônia entrega uma performance completa, que vai desde sua firme, mas de certa forma frágil, fisicalidade, aos trejeitos que exibe ao ser paquerada em um bar, às belíssimas e sinceras reações que tem quando ouve uma música que gosta tanto. E quando perde momentaneamente o controle que a permitiu se tornar a mulher que se tornou, percebam como sua voz se torna falha, ou, quando conta uma de suas muitas histórias, como ela para em certos e curtos momentos para firmar detalhes que passam voando por sua cabeça.

O componente sonoro, inclusive, é um dos principais motivos para que o filme funcione do jeito que funciona. Com um design de som trabalhado nos mínimos detalhes, somos imersos no mundo de Clara não apenas pelo jogo de câmeras de Kleber que sempre nos mostra ou sua perspectiva das coisas, ou a perspectiva de outros para com ela, ou uma visão quase espectral de tudo que lhe acontece (mais sobre isso a frente), mas também pelo som constante do mar, das sacolas que carrega, das panelas na cozinha, dos ruídos da casa, de uma música tão alta que não conseguimos entender nada que é falado, e de outras no volume certo para que não precisemos que nada seja falado. Também graças à trilha sonora, escolhida a dedo, que combina uma diversidade de músicas correspondente ao tamanho do Brasil - e da coleção de Vinis que Clara parece conhecer tanto que folhar entre eles parece algo tão comum como respirar - o diretor é capaz de estabelecer diversas rimas e raccords sonoros que auxiliam o também magistral trabalho de edição, responsável por passagens marcantes como aquela que vai da vista do mar para a água escorrendo de um chuveiro, ou até mesmo daquela que mostra como o mesmo armário que despertou tantas lembranças na tia Lucia seguiu com Clara para ser elemento de suas próprias histórias.

E se Kleber é menos preocupado com os significantes do que os significados, o design de produção de “Aquarius” é tão rico que nos permite diversas interpretações, desde como Clara encontra no azul - do mar, das paredes, do céu, de utensílios domésticos - sua paz, à como a cor também pode remeter ao fato de que o nome do prédio significa, em suma, aquário, com Clara sendo o último peixe ainda vivendo nele. Prestem atenção, também, nas sutilezas presentes no roteiro, como no momento onde Ladjane (uma natural e eficaz Zoraide Coleto) beija a foto do filho, ou como Clara se mostra orgulhosa por “atravessar” a linha da pobreza para prestigiar a festa de aniversário de sua empregada. Passagens como essa que, inclusive, são cruciais para que entendamos como Kleber jamais faz dela uma heroína sem defeitos, pois Clara se encontra, indubitavelmente, no lado mais rico da faixa que divide o Brasil.

O que me faz acreditar que seu papel na trama central do longa seja justamente mostrar que, ao conquistar uma vida financeiramente estável, o brasileiro não deveria enveredar para o lado que a construtora Bonfim representa, o lado opressor e puramente capitalista que, hoje, toma conta do nosso governo. Interpretado de forma excepcional por Humberto Carrão, Diego se mostra um vilão fascinante por representar o playboy que acredita que, por ter sido dado um cargo graças a posição privilegiada da família, é intocável, mas jamais deixa de acreditar cegamente que teve de trabalhar muito para chegar ali. Porém, é sua forma passivo-agressiva de agir, e falar, que acaba por me gerar calafrios sempre que penso na ameaça que o mesmo representa para Clara.

Voltando, é claro, de volta para ela, não é difícil perceber o quão bem escrito é este filme de Kleber que, de certa forma, habita o mesmo mundo de “O Som Ao Redor”. Se sobressaindo a tal por nos mostrar uma personagem multifacetada que, por mais teimosa e intransigente que pareça, jamais deixa de ser empática - e caso você ache que ela poderia apenas ter vendido a casa, certamente não percebeu a mensagem principal do filme -, “Aquarius” evoca os mesmos momentos que quase remetem ao terror, jamais explicados justamente para mostrar que há muito no nosso cotidiano social que, simplesmente, não compreendemos. Em diversos momentos, sinto como se tomássemos a visão do próprio apartamento, como se o mesmo fosse vivo (assim como o Overlook de “O Iluminado” ou “O Grande Hotel Budapeste”) e guardasse em si as muitas memórias que presenciou, e é como se este tivesse em Clara uma fixação, por saber que ela lhe proporcionará seus últimos momentos antes de ser destruído.

E é sobre memórias e a vontade natural de preserva-las que “Aquarius” é. De como tudo o que vivemos faz parte de nós e é mais do que natural que resistamos em abrir mão disso, e como não há metáfora melhor para a vida do que a arte. Por isso Clara tem um quadro de “Barry Lindon” em casa, por isso ela guarda seus vinis, por isso ela quer se manter próxima do lugar onde os filhos cresceram. Para uma mãe que já não é mais a prioridade destes filhos - por mais que todos demostrem que a amam profundamente e que são gratos por tudo que ela fez -, para uma esposa que já não mais tem seu marido, para uma profissional há muito aposentada, tudo que resta é ela, e desistir de si mesma, nesta situação, é como morrer e ter de continuar vivendo.

“Aquarius” é, por tudo que apontei acima, uma obra seminal que, para mim, toma um contexto ainda mais pessoal por me lembrar da pessoa mais importante de minha vida. Tanto das muitas coisas que nela amo, como das muitas que nela me irritam, tanto suas qualidades como seus defeitos, tanto sua paz como sua dor.

Por conta disso, serei eternamente grato à este lindo filme.

10

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