Crítica | A Última Noite

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Spike Lee tem uma forma curiosa de mostrar afeto.

Pelo menos de 2000 pra cá, mas também cedo no seu trabalho, o cineasta mostra abraços, apertos de mão e outras interações sem palavras mais de uma vez, por ângulos diferentes. O que eu acho que isso quer dizer? Bem, chutando: para um homem compromissado em mostrar os diversos lados das relações raciais e sociais em tela com filmes viscerais e que em sequencia figuram como uma surra, não apenas um soco no estômago, ele opta por reforçar como pequenos momentos de afeto e emoção devem ser valorizados porque, no final do dia, são o que nos mantém vivos. E humanos.

Em “O Último Dia”, adaptado por David Benioff do livro que ele próprio escreveu, Edward Norton encarna Monty, um traficante vivendo seu último dia antes de ir para a prisão por sete anos. Nas mãos de Lee, o livro lançado em 2001, antes dos atentados do 11 de Setembro, não apenas teve as implicações provocadas pelos ataques implementadas em sua adaptação, mas teve todo o melancólico ultimo dia livre de Monty transformado em um filme narrativamente irresistível, e tematicamente em um documento desse momento tão crucial da humanidade.

Talvez hoje, “A Última Noite” seja ainda melhor do que quando fora lançado, porque finalmente podemos entender o impacto que aquele fatídico dia teve no andar da carruagem.

Assisti muitos bons filmes em 2020, mas acho que fazia tempo que não ficava tão enfeitiçado após o rolar dos créditos, tanto que me levou uns bons dias para finalmente poder escrever a crítica. Em sua superfície, o longa pode parecer uma simples história de crime, com requintes presunçosos de auto-importância, relacionando a vida de um traficante qualquer com todo o caos provocado pelos atentados. Mas o roteiro de Benioff, e graças à direção dinâmica de Lee, nos envolve tanto nas tramas envolvendo seus personagens principais que é como se tivéssemos assistido não apenas um dia, mas insights muito mais aprofundados e quase intrusivos na vida de cada um.

Conhecemos Frank (interpretado por Barry Pepper) como um homem confiante e no topo do jogo, com um apartamento recém comprado ao lado dos destroços das torres, e que se gaba por estar naquele 1% que esmaga os outros 99. Ao longo do filme, o descobrimos emocionalmente fraco e profundamente afetado pela partida do amigo, mas orgulhoso demais para admitir. “Quando você vem ao mundo real, não sabe como agir”, lhe dizem.

Conhecemos Jacob como um professor infeliz com a própria origem (judaica, rica), um homem preso dentro de si e que graças ao genial Philip Seymour Hoffman parece sempre andar no caminho certo, porém descobrimos que esconde um desejo proibido e que tenta justificar seu absurdismo com a lógica. “Quem você quer ser? R. Kelly?”, o perguntam quando conta.

E é claro, conhecemos Monty, vivido pelo ator mais esnobado da história do Oscar em Edward Norton, que o interpreta como um homem afetuoso com seus amigos, pai e namorada, mas que claramente assumiu uma vida que, por mais que ele saiba que tenha lhe causado dor, nunca o fez se arrepender. “As pessoas gostam de você Monty, é um dom”, lhe falam.

Ao curso dos intensos, mas devidos 135 minutos de projeção, conhecemos mais do que jamais gostaríamos dos três, o suficiente para julgá-los como amigos próximos, mas também nos sentirmos magnetizados pela forma como escrevem seus destinos. De certa forma, aquela uma noite pode não mudar nada na vida de ninguém exceto a de Monty, mas acaba por revelar verdades sobre seus amigos que faz com que nossa percepção acerca de cada um mude drasticamente.

Também com as presenças impossíveis de se ignorar de Rosario Dawson e Anna Paquin, duas versões da mesma menina, encantada por um homem mais velho e sem medo de mostrar seu corpo em troca de qualquer coisa, o filme também acena para o machismo (algo do qual o próprio Lee teve que evoluir na vida) estrutural: os três protagonistas traçam caminhos trágicos, mas as pessoas mais afetadas talvez sejam elas. Por serem fortes, os homens desconfiam que são desleais. Por serem atraentes, chegam a ignorar tal possibilidade.

O perjúrio sempre foi um tema inevitável nos trabalhos de Lee, e aqui não é diferente, com um discurso à la Clube da Luta onde Monty professa seu ódio à todas as comunidades estrangeiras e diferentes a ele que compõem Nova York, em um monólogo já icônico e que, ao meu ver, é um momento de ira que não condiz de verdade com quem Monty é, respondido à altura pela primeira atitude que o vemos tomar no início do longa, onde ele salva um cachorro abandonado para morrer. “Todos os dias que ele vive são por minha causa”, ele diz com ternura e amor nos olhos, orgulhoso e feliz por ter feito ao menos algo de bom.

Mas não apenas do estudo de personagem se faz a obra, sendo que as habilidades de Lee como cineasta transformam este estudo em uma aventura curta, mas sempre nos deixando no limiar entre o medo provocado pelo dia seguinte e a possibilidade eminente de algo mudar o curso de um final aparentemente já determinado. Fotografado por Rodrigo Prieto com uma ênfase na escuridão da noite, mas também fazendo um excepcional jogo de luzes nas cenas internas que podem ser frias, estéreis ou quentes, é como se os personagens estivessem sempre em evidência, como que se as trevas e demais emoções ao seu redor jamais fossem maiores do que aquelas que eles próprios emanam. Com um design de som brilhante, com destaque para a sequência na boate onde a música eletrônica pulsa e as transições quase psicodélicas de Lee desnorteiam, ainda somos capazes de ouvir tudo que os personagens conversam sem jamais conseguirmos ignorar o local onde se encontram - e percebam a composição completa dos três atores ao notar seu comportamento na boate: Monty é natural, Frank força uma pinta de galã e Jacob está claramente desconfortável e encolhido, como o próprio guarda roupa que vestem evidencia.

Porém, embora a proeza técnica da projeção impressione e te lembre a todo momento que está assistindo a um cineasta diferenciado, é o que o longa faz depois que, literalmente, o elevou em minha cabeça. É como se as histórias de cada uma daquelas pessoas tivesse continuado após o fim, mas que a janela para seus mundos tivesse sido fechada para nós e isso pode ser frustrante por passar a sensação de algo inacabado, incompleto, mas não é exatamente sobre isso que um filme sobre o último dia de liberdade de um homem deve ser?

De certa forma, “A Última Noite” é um filme sobre caráter, sobre descobrir quem é você no mundo, sobre negar a própria natureza e sobre como ela sempre aparece nos momentos derradeiros. Os personagens que vemos ao final do filme são diferentes daqueles do começo, mas apenas porque passamos a conhecê-los melhor, assim como a própria natureza caótica da humanidade que, novamente, fora trazida a tona com a queda das Torres Gêmeas.

9.5

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