Crítica | Silêncio

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Uma conversa que tenho frequentemente com meus amigos é sobre como a cultura Japonesa é uma das poucas, e talvez a principal, do mundo que não depende em nada da Americana para se manter.

Em uma certa cena desta obra monumental de Martin Scorsese, o Japão é relacionado à um pântano, onde sementes forasteiras jamais poderiam crescer e substituir a mata nativa, por mais que essa possa ser tão densa e traiçoeira que machuca seus próprios nativos. Dito isso, é importante ressaltar que “Silêncio”, projeto passional de décadas do diretor, é um filme complexo sobre ideologias e instituições, mas mais do que isso, e assim como todos os seus grandes filmes, se apresenta como um profundo e doloroso estudo da condição humana e, neste caso, sua relação secular com a fé.

Além disso, sempre vale lembrar que o trabalho de Scorsese, para espectadores não habituados, é desafiador. A virilidade de muitos de seus personagens principais pode e deve afastar todos aqueles menos chegados à violência - no cinema, é claro - e o total descompromisso do diretor em vender cenas de ação impossíveis também não ajuda. E se em seus três primeiros filmes dos anos 2010 ele já havia ido ao limite da sanidade (“Ilha do Medo”), revelado seu lado mais vulnerável ao explorar os primórdios de seu amor por cinema (“A Invenção de Hugo Cabret”) e dançado em cima do politicamente correto (“O Lobo de Wall Street”), aqui ele convida a todos nós a questionarmos não apenas nossas crenças ou falta delas, mas a origem de nossos posicionamentos pessoais e o impacto que eles causam nas mais diversas escalas.

Seu terceiro filme com temática religiosa (“A Última Tentação de Cristo”, “Kundun”), “Silêncio” é baseado no livro de mesmo nome de Shūsaku Endō e conta a história de dois padres jesuítas, que, no século 17, viajam de Portugal para o Japão em busca de seu mentor desaparecido, além de prosseguir com os esforços da igreja católica em introduzir o cristianismo no país.

De um ponto de vista técnico, “Silêncio” é feito com toda a maestria que um cineasta com cinco décadas de trabalho, e diversos clássicos no caminho, desenvolveu, e se muitos de seus projetos sucederam justamente pelo improviso e aparente falta de esforço (em “Os Bons Companheiros” ele disse ao elenco fazer o que estavam afim), aqui a delicadeza e a meticulosidade com que cada aresta fora preenchida fazem do longa um prato cheio para qualquer amante da sétima arte.

A edição da colaboradora de longa data do diretor, Thelma Schoonmaker, alterna bem os planos abertos e fechados, não quebra a continuidade de planos sequência e é eficaz em evocar simbolismo em transições como aquela que representa a imagem dos padres para seus crentes, ou uma outra onde a própria imagem de Sebastião Rodrigues (Andrew Garfield), vista de vários ângulos (e em um reflexo) lembram a de Jesus Cristo. Já a excepcional fotografia, do vencedor do Oscar Rodrigo Prieto (pelo estonteante “As Aventuras de Pi”), evolui, de acordo com o próprio, progressivamente junto com o tom do filme. Se utilizando de cores frias para retratar as lindas paisagens Taiwanesas sem deixar que sequer um rastro de vida e esperança brilhe naquelas terras, enquanto, em cenas posteriores, emprega um visual mais acalorado e diurno, Prieto cria uma rima contrária com o estado do protagonista, pois se no ambiente visualmente mais ameaçador sua fé parece inabalável, naquele menos abrasivo ela é questionada constantemente.

A música, coordenada por uma dupla pouco conhecida, é essencial para a imersão, apostando em notas e acordes isolados e sinistros que, por vezes, se combinam aos sons ambiente de ondas, vento, passos e, até mesmo, cânticos e tambores de personagens. A mixagem de som do longa, inclusive, fora esnobada em premiações, pois é possível ouvir o mais sutil dos passos na areia enquanto os pássaros à distância e o mar ao lado nunca deixam de representar a primitividade daquele lugar. O design de produção e os figurinos, por sua vez, também mereciam indicações e prêmios por reconstruírem com tamanho detalhismo a era Edo do Japão, inspirados por pinturas barrocas da época e sendo abrilhantados pela maquiagem que parece transformar cada um dos atores, dos principais aos figurantes, em habitantes de um mundo onde a água frequentemente serve como empecilho e não como elemento essencial para vida.

Porém, apesar de impecável em cada uma destas áreas, é inegável que “Silêncio” não é para qualquer um, mesmo quando descontada sua temática provocativa. Ambiental e paciente, qualquer espectador menos interessado em apreciação vai se enfastiar e, possivelmente, dormir antes da metade da projeção, pois por mais que o trabalho de Scorsese com as câmeras seja poético e hipnotize os olhos (com destaque para planos abertos e longos perfeitamente coreografados e uma orquestração da misé-en-cene perfeita tanto nos vilarejos como no templo onde onde Rodrigues é mantido prisioneiro), são duas horas e quarenta minutos de um filme que não tentam, em momento algum, te recompensar por acompanhá-lo, algo que abordarei mais para frente.

Pois se o longa tem como objetivo questionar a fé e as instituições, não espere que ele vá lhe oferecer qualquer resposta ou posição definitiva, pois por mais que por vezes os nativos pareçam os vilões, não é como se as posições mantidas pelos padres interpretados por Garfield e Adam Driver, que apenas refletem a de sua congregação, fossem moldáveis de qualquer forma. Não há diálogo entre ambas as crenças, algo brilhantemente apontado por Rodriguez em uma conversa com Inoue Masashige, figura histórica importante na erradicação do cristianismo na época e interpretado perfeitamente por Issey Ogata, que murmura suas falas com uma mistura de malemolência e sabedoria que jamais é ausente de bondade. Há apenas a certeza, de cada lado, em saber que sua verdade é a absoluta e que a do outro pode apenas ferir.

E se isso não fosse, por si só, um exemplo realista e poderoso dos temas que o roteiro, assinado por Scorsese e seu colaborador Jay Cocks, aborda, a construção do personagem de Rodriguez e seus questionamentos cada vez maiores acerca da própria fé tem um efeito emocionalmente duradouro para qualquer um que absorva sua dor. Algo que Andrew Garfield consegue passar com a melhor interpretação de sua carreira - e é inevitável mencionar como o protagonista cristão de “Até O Último Homem”, interpretado por ele no mesmo 2016, é um paralelo no minimo curioso -, pois por mais que a inconsistência de seu sotaque português seja notável, o dinamismo de suas emoções e seus modos em situações de desespero emulam um homem devoto, mas humano, que sofre não apenas por ver o sofrimento alheio, mas por saber que de maneira alguma poderia corresponder à imagem que seus crentes criaram de si. Já Adam Driver, que parece mais disposto à se entregar, tem um dos momentos mais impactantes do longa que destaca toda a dedicação do ator em mergulhar (sim, este momento) em seus personagens tanto física como emocionalmente.

O elenco de apoio, por sua vez, conta com diversos atores asiáticos tão uniformemente bem que por vezes se esquece que estamos assistindo à interpretações, com destaque, obviamente, à Yoshi Oida como o justo e cansado Ichizo, e ao trágico Kichijiro de Yosuke Kubozuka, figura que se assemelha à de Pedro (apóstolo) e que frequentemente se entrega à própria covardia para permanecer vivo. Porém são os rostos sujos e maltratados daqueles muitos habitantes, que se curvam com uma facilidade assustadora (mérito, também, de Scorsese) e expressam verdadeira felicidade ao brilharem os olhos sempre que seus olhares se cruzam com as figuras que endeusam.

Mas agora deixo o aspecto técnico do longa de lado e divago sobre seus valores morais, que reforçam que toda esta experiência orquestrada por Scorsese - e é importante vivenciá-la como tal, pois como filme “Silêncio” vai lhe cansar - tem mensagens para todos nós.

Retornando ao assunto que decidi deixar para o final, considero genial o fato de que, no filme, seja oferecida a mesma quantidade de gratificação para o espectador que a religião oferece a seus fiéis. Apenas a frase que encabeça o trailer e que nunca é repetida por completo, mas sim em variações, já é suficientemente perturbadora para todo aquele que já questionou, ou ainda questiona, suas próprias crenças. E aí não importa se você é cristão, budista, judeu, ateu, ou membro de qualquer outro grupo, mas é inegável que a resposta do ser humano por respostas, sejam elas religiosas ou científicas, é constantemente respondida com um implacável silêncio.

Mas tomarei o ponto daqueles que creem em algo como o que eu creio, seja ele ou não verídico. Não sei qual doeria mais, assim como levantado por Rodriguez: a ignorância ou o simples fato de não haver algo para lhe responder. Se doeria mais viver, naquele lugar e naquela época, sem um alento para seu sofrimento, ou morrer e saber que passou a vida acreditando que tudo aquilo um dia valeria a pena. E é genial que o filme, assim como os seres humanos que mostra, não tenha ou ofereça respostas, pois por mais que seu fim sugira que a fé pode perdurar a todo e qualquer mal, não é como se ela fosse convincente o suficiente para justificar toda aquela jornada tortuosa.

Essas questões não apenas transformam “Silêncio” em uma experiência capaz de mudar percepções e fazer você rever seus conceitos, mas permanecem com você muito após os créditos finais. E por mais doloroso e difícil que seja completá-la, é para isso, para melhorar, mudar ou questionar nossa vida, que vemos filmes em primeiro lugar.

Ou deveríamos ver.

9.5

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