Filmes Para Toda Hora | Magnólia
Existem duas maneiras pelas quais o final de um filme pode nos enganar. Uma delas causa frustração. A outra, estupefação. “Magnólia”, muito obrigado por ser a segunda.
Nenhum de vocês sabe disso, mas desde pequeno eu tenho medo de sapos. Não é um medo do estilo susto com a geladeira que abriu sozinha no “Atividade Paranormal”. É um medo pesado. Medo para nunca pisar na grama molhada no escuro. Medo para colar retalhos de papel em cima das imagens deles no livro de biologia da sexta série. Medo para querer faltar a aula quando surgiu o boato de que iríamos dissecar as temíveis criaturas - felizmente só uma farsa criada pelos meus “amigos” para me perturbar. É fobia. Bufonofobia, para ser mais exato - sei graças à única vez que pesquisei no Google sobre. “Única” pois, ao digitar essa palavra estranha na barra de pesquisa, várias imagens de sapos pulam na tela e esta é a última coisa que eu quero ver. Nunca entendi a origem deste pavor, mas sei que a resposta já está ali, em algum lugar, escondida no meu passado, eu tenho certeza. E mesmo assim, fugindo de sapos desde que me conheço por gente, não fui capaz nem por um segundo de desgrudar os olhos da cena apoteótica ao final de “Magnólia”. Mesmo após 20 anos do filme, essa continua a ser uma das cenas mais discutidas entre quem acabou de assisti-lo. Mas o longa traz muito mais do que um temporal de anfíbios.
Alguns filmes já foram tão analisados que não vale a pena repetir o processo anos depois de seus respectivos lançamentos. Portanto, nesta coluna do Outra Hora, tentaremos entender o motivo pelo qual alguns destes filmes impactaram multidões - e aquele que escreve o texto - em um caráter tão pessoal.
Ao apresentar alguns breves contos curiosamente confeitados por coincidência, Paul Thomas Anderson nos prepara para uma jornada de entrelaces. Tramas que fazem jus à semântica de sua palavra. Essa promessa dá ao filme a liberdade de introduzir diversos personagens isolados - cada um com suas particularidades, frustrações e traumas - e nos faz prestar muita atenção em cada um deles enquanto rondam o ambiente enérgico e melancólico de San Fernando Valley. Afinal, cada bater de asas de borboleta que se desenrola ao decorrer do filme servirá para algo no futuro... É óbvio, não é?
Conhecemos: Jim Kurring, um policial que busca fazer o bem acima de tudo; Claudia Wilson, uma viciada que tem sérios problemas com o seu pai; Jimmy Gator, este pai, que também é um apresentador de um famoso programa televisivo de perguntas e respostas para crianças e adultos; Stanley Spector, uma das crianças prodígio que participa atualmente do programa; Donnie Smith, um adulto que já foi uma dessas crianças prodígio, mas que perdeu tudo que conquistou; Earl Partridge, ex produtor deste programa que vive solitário em uma casa repleta de cachorros e está à beira da morte; Linda Partridge, a sua esposa; Frank Mackey, palestrante misógino e exagerado que é um filho perdido de Earl; e Phil Parma, o enfermeiro encarregado de cuidar de Earl em seus últimos momentos e o menos perturbado dessa gama de personagens.
O entrelace, a princípio, é claro: eles estão ligados a partir da conexão com outro personagem. E isso nos faz acreditar que, em algum momento, uma dessas histórias vai cruzar com a outra e um acontecimento surpreendente vai transformar a narrativa de maneira que o problema de um seja resolvido através do problema do outro em uma conclusão amarrada que rima com todas as coincidências apresentadas no começo do filme.
Que erro.
Os poucos momentos em que os núcleos se encontram não são suficientes para caracterizarem nem sequer uma coincidência brincalhona. São esbarrões contra-calculados, quase que indesejados. Trombadas leves, mas necessárias devido a falta de espaço - como em um metrô lotado.
E ao final de tudo, um glorioso e incômodo desfecho: uma chuva de sapos. O final não conecta. A história não é chave e o futuro não é fechadura de nada. Não há fato curioso, coincidência ou um visível e sólido entrelaçamento. Percebemos que a única coisa que une todos os personagens é a sua jornada temática no drama da história: o relacionamento com os pais e a capacidade (ou não) de perdoar ou ser perdoado, ou seja, as suas relações com o passado. Ou seja, nosso engano se deu ainda na fase prologal: não são diversas histórias que estão sendo contadas, é apenas uma.
E “Magnólia” nos mostra isso de diversas maneiras ao longo de suas três horas. O que vemos muito hoje (principalmente em séries e novelas, que buscam fazer o malabarismo de diversas tramas e personagens ao mesmo tempo) é a construção ascendente de um clímax em um núcleo que é interrompida com a troca para outro núcleo. Por exemplo, quando uma revelação bombástica será feita, a cena é cortada para aquele personagem secundário que nem lembrávamos que existia. Nesta troca, recomeçamos do chão. O “gráfico” de impacto de um momento começa de novo e cai de 100 para 0 em um segundo.
“Magnólia” traz uma estrutura díspar, contrária a técnica, em que o filme inteiro compõe somente uma linha. Um gráfico que sobe e desce complementarmente, ou seja, as histórias de todos os personagens cantam em uníssono. E sim, a cena de “Wise Up” (que poderia facilmente ser cafona e acaba sendo elegante e comovente) harmoniza com esse tema do filme. Remexendo os pesares de todos os personagens na mesma panela, a cena traz a certeza de que, querendo ou não, fazemos todos parte da mesma grande história, sentimos os mesmos medos, a mesma necessidade de amar e o mesmo receio em perdoar ou aceitar que o passado sempre será parte de quem somos.
“Magnólia”, portanto, retrata muito mais uma consonância de sentimentos do que uma consonância de eventos, assim como um álbum musical.
Paul Thomas Anderson já havia trabalhado em videoclipes anteriormente e isso se mostra bastante neste seu longa. A habilidade que ele adquiriu vai além da sensibilidade musical apurada do filme - ele também sabe lidar com uma sensação rítmica como fio condutor de uma narrativa. “Magnólia” é um musical, mas quem canta não são os personagens (exceto na cena de “Wise Up”). Quem canta são os movimentos de câmera, que funcionam como a batuta do condutor de uma orquestra. Quem canta são os picos climáticos do roteiro, que nos atingem mais forte que o som dos violinos em um concerto. Quem canta é a intensidade das atuações, que trazem mais movimento e cadência à trama do que passos de dançarinos da Broadway seriam capazes de trazer a essa história.
Muito responsável por esse encadeamento musical narrativo é a artista Aimee Mann, cujas músicas inspiraram todo o roteiro do filme e fizeram parte da trilha sonora. Ao ouvir com atenção, é fácil perceber que as letras que ela compôs foram responsáveis por desenhar quase toda a carga emocional do filme. Paul Thomas Anderson, desde o início, já sabia que sua história seria uma grande sinfonia melodramática.
E a grande jornada sinfônica dos personagens é a da entrega. “Save Me”, de Aimee Mann, é uma mensagem de apelo: “você consegue me salvar de ser um desses loucos incapazes de amar?”.
Quando o policial Jim perde sua arma, quando Frank desata a chorar, quando Stanley se permite mijar e Claudia se permite sorrir: estes são alguns dos momentos em que os personagens se entregam às sua emoções, à fragilidade. Quando eles se autorizam, finalmente, a sentir o que precisam. E essa é a história de todos os personagens, exceto Phil que, por ser bem resolvido, é o único capaz de se solidarizar com o sofrimento dos outros e o único que demonstra surpresa com a chuva de sapos.
Este fenômeno meteorológico transforma esse filme em um oposto ao contemporâneo líder de bilheterias “Vingadores”, por exemplo. Ele constrói suas histórias paralelas e nos estimula a acreditar em um cruzamento mas, exatamente na hora em que mais esperamos essa coincidência mágica acontecer, Paul Thomas Anderson nos diz não. Ao invés de agradar nossa necessidade por uma resolução fácil, ele despeja sapos do céu e parece que cada um dos anfíbios, ao colidir com o solo, grita: “Era um evento inacreditável que você queria? Uma implausibilidade que afetasse todos os personagens? Pois tome.”
Afinal, não existem resoluções espertas e conclusões perfeitas. O próprio roteiro do longa funciona como um constante redirecionador de sentimentos conflituosos e dispersos que, mesmo ecoando dentro da trama e fazendo sentido quando aplicados à situação de cada personagem, ainda assim não seguem uma ordem linear organizada pela lógica narrativa (paz/problema/conflito/resolução/paz) que aprendemos a seguir. Aquela lógica tão bonita que aprendemos a respeitar. A lógica falsa que queremos respeitar mas que jamais conseguiremos, porque não existe ninguém cuidando do roteiro da nossa vida, ninguém medindo nossas vitórias e nossas frustrações para que elas sigam um padrão razoável e moderado que não aborreça qualquer espectador. Nós estamos, diariamente, assistindo ao filme da nossa própria vida e tem vezes (e não são poucas) que ficamos de saco cheio. Queremos - pelo amor de Deus - desligar a televisão. Existem vezes em que somos incapazes de amar. Existem vezes em que transbordamos de amor sem ter onde depositá-lo. Existem vezes em que teimamos em não perdoar e existem vezes em que estamos certos em nossa teimosia.
Ao procurar um pouco sobre o filme, descobri que as chuvas de sapo existem. Quando acontecem, são sapos menores que são levados ao céu pelo vento e acabam sendo despejados em algum outro local. Como dito pelo prodígio Stanley (que já deveria conhecer essa informação) ao admirar maravilhado a chuva de sapos:
A mesma mensagem é exposta em um quadro na casa de Claudia, reforçando a ideia de que uma chuva de sapos é um fenômeno mais crível do que o fenômeno de pessoas facilmente se resolvendo com seus demônios do passado.
Acredite em Paul Thomas Anderson: jamais responderemos uma pergunta buscando a resposta naquilo que está para acontecer. Todas as nossas verdades já aconteceram. Somos apenas consequências relutantes. Porque “o passado já era pra nós, mas não nós para o passado.” E para qualquer que seja a sua pergunta: a resposta já está ali, em algum lugar, escondida no seu passado, tenha certeza.