Crítica - O Padre e a Moça / A Falecida
Das muitas vertentes do Cinema Novo, das minhas favoritas estão aqueles filmes que parecem presos entre a urbanização opressiva das grandes cidades e a vastidão desnorteante do norte e nordeste. Filmes onde os personagens vivem em pequenas ruínas de civilização, que por sua vez trazem a sensação de que já nasceram velhas e aos pedaços.
Se Porto das Caixas trabalha isso melhor que qualquer outro, transformando aquele lugar quase abandonado em um parque assombrado, O Padre e a Moça e A Falecida ainda fazem o encontro desse mundano condenado com uma dimensão religiosa extremamente específica do Brasil. Pagadores de dízimo que, sem nem saber direito, acreditam no grande plano que justifica suas existências miseráveis (como em um dos dois acima) e suas ações condenáveis: se em Tocaia no Asfalto um matador de aluguel precisa matar alguém por que já rezou por sua alma, em O Pagador de Promessas o padre, que praticamente sentenciou Zé do Burro à morte, insiste em rezar por sua alma, como se fizesse qualquer diferença agora que seu cadáver se encontra atirado nas escadarias da igreja.
E não que este texto tenha como objetivo julgar a crença de ninguém, fui criado no catolicismo, catequizado e crismado, mas o poder do Cinema é justamente nos fazer apreciar discursos completamente diferentes dos nossos - não que eu ainda pratique a religião, também. Assim, um ser pode tranquilamente se emocionar com o poder da fé em filmes de Dreyer, Bresson e Shyamalan, ao mesmo tempo que a encara como um mal inigualável - em filmes dos próprios, inclusive, ou de outros católicos como Scorsese e Hitchcock.
Entrando no cânone de Dias de Ira, Narciso Negro e A Tortura do Silêncio, O Padre e a Moça é dos filmes mais universais do Cinema Novo, poético de maneira que foge um pouco da dureza de um Nelson Pereira dos Santos ou Glauber Rocha, e usando da iconografia católica como esse catalizador que permite uma maior acessibilidade, além daqueles cientes do contexto do Cinema e sociedade brasileiros. Explorando as entranhas - físicas e patológicas - daquela comunidade, ao mesmo tempo que oprime seus protagonistas (o título direto é essencial e auto-explicativo), os fazendo encontrar liberdade apenas em uma Igreja abandonada em meio à natureza implacável ao redor.
Já A Falecida é meio que um Ensina-me a Viver versão impiedosa, assumindo muito mais o slogan central do movimento: na cena da morte, é quase como um dos nascimentos do found-footage, uma câmera que se mostra presente, um momento de Cinema puro capitalizado por uma das grandes performances de um dos grandes nomes do nosso Cinema.
O que faz Fernanda Montenegro aqui é simplesmente bizarro. Os olhos arregalados ajudam, mas ela não só absorve essa atmosfera mórbida e irônica da mise-en-scène, como adiciona uma dimensão extra pra coisa toda. Quase que um filme inteiro em uma atriz, encorporando uma paixão pela morte que faz algo como Fé Corrompida quase parecer adequado pra uma sessão de Tela Quente.
São filmes essenciais do movimento justamente porque são os que melhor oferecem aquele que acredito ser um dos três componentes principais. Se Glauber e Nelson dominaram a estética da fome e Sganzerla, Bressane e Tonacci reinventaram a forma, Andrade e Hirszman reforçaram como a relação obsessiva com a fé meio que segura tudo junto e limita horizontes, na promessa falsa de ascensão.
Em ambos os filmes, os protagonistas encontram no fim a liberdade, que em A Falecida vem em um dos momentos mais bonitos do Cinema Brasileiro, onde a resposta para todas as indagações vem dos céus, na chuva. Finais dignos de um Bresson em sua desolação, mas com toda a força de um dos movimentos mais fortes da história do Cinema.