Crítica | Um Certo Capitão Lockhart (1956)

O HOMEM DO FAROESTE

Anthony Mann usa da sensibilidade do espaço para se apropriar do gênero sem fugir dele


Sendo apenas o terceiro filme que assisto de Anthony Mann, me aproximo para escrever essa crítica com o intuito de comparar anotações e de registrar uma percepção: relendo algumas poucas notas que escrevi sobre The Naked Spur (1953), foi possível resgatar algumas coisas que me parecem válidas de formalizar em um texto maior.

Um traço que já percebi na minha abordagem com os filmes que assisto é como acabo os pensando a partir do tema que estou estudando no momento - este por vezes alheio aos filmes em si. Por exemplo, não necessariamente estarei assistindo filmes macmahonistas enquanto estudo e leio sobre macmahonismo (mas mais frequentemente não estarei assistindo apenas a filmes que se relacionem com tal tema, e sim uma amalgama maior).

Uma reflexão recorrente tem sido sobre a linguagem do cinema em relação à linguagem da televisão, e como vários faroestes se popularizaram justamente pela televisão (algo comum no Brasil, e que pude observar de maneira empírica ao longo dos anos), o que talvez tenha influenciado também no jeito de filmá-los. Por exemplo, um cineasta fazendo um filme para TV, nos anos 50, o faria com razão de aspecto reduzida a 4:3, mesmo com o scope já em amplo uso. Por outro lado, um cineasta fazendo um filme para o cinema, mas com a TV em mente, pode organizar suas cenas de modo que se resolvam no centro, excluindo o máximo possível elementos que seriam cortados na versão para a TV. No que tange o que filmam, imagino que se falando de Faroestes, um diretor poderia escolher filmar ator e paisagem em planos distintos, talvez em contraplano, gerando uma conexão entre os dois mas também os evidenciando para o espectador de TV.

Esse não me parece ser o caso de Anthony Mann, um diretor bem cinematográfico, que pensa suas cenas a partir do scope, a partir da escala, a partir da contemplação permitida pela escala do scope em uma sala de cinema. Em uma cena, ele leva um grupo de cavalgantes até James Stewart em um movimento de câmera impossível anteriormente sem um aparato que tornasse o plano em um plano industrial: com a razão de aspecto reduzida, torcer tanto o pescoço se torna contra-natural, e embora não por isso, também por isso chamamos de sintético o que fazem cineastas como Otto Preminger. Com a tela alargada, o movimento parece não mais que uma leve virada de cabeça, um movimento imersivo em um filme sobre pontos de vista.

A imersão, como parecia saber Mann, é uma característica do cinema, mais do que da TV. O Homem de Laramie preserva então uma espécie de visão natural, quase rústica do Faroeste, de homens que olham pelos terrenos que cavalgaram ou ainda irão cavalgar. Em uma cena, o patriarca do rancho onde o filme se passa, diz que até onde se pode ver, é tudo seu. Mais tarde, o mesmo homem revela que está ficando cego, e enxerga apenas um décimo de todos os hectares que lhe pertencem. Mas nunca vemos o que ele aponta, ou o que os personagens veem. Mann não é hitchcockiano, e o espaço só é mostrado se habitado por seus personagens. Não é de seu interesse conduzir ou sequestrar o olhar do espectador, mas sim se adequar a ele.

Sua câmera nunca está perto demais para isolar, nunca longe demais para diminuir. Ele não está interessado em beleza por si, nem se importa muito com simbolismo. Ele possuía um talento infalível para selecionar exteriores que não apenas se adaptavam às necessidades do roteiro, mas surgiam como a personificação das tensões morais e psicológicas.
— COURSODON E SAUVAGE, 1983

Outro traço de sua sensibilidade com o espaço já me era evidente em The Naked Spur (1953): em uma cena daquele filme, um grupo heterogeneo liderado por James Stewart se encontra em uma caverna. Stewart, naquele filme, é um caçador de recompensas transportando um prisioneiro, acompanhado de sua leal esposa, e de outros dois homens que se encostam a Stewart no caminho. A maneira como Mann filma a profundidade da caverna coloca os homens uns contra os outros no ambiente fechado. Nos ambientes abertos, Mann os destaca do cenário, os ressalta pelas cores, os traz para frente da cena.

Em Um Certo Capitão Lockhart, o espaço é refém de seus protagonistas. O personagem de Stewart vem de outro lugar, mas diz não ser de nenhum lugar, e logo é estabelecida uma dinâmica de poder semelhante àquela vista em The Naked Spur, mas substituindo a posse da recompensa pela posse do espaço. Se pensar, boa parte do espaço filme é mencionado, não mostrado, pois o que importa são os homens.

Bem, o uso de locações é para potencializar os personagens que estão envolvidos, porque alguém que é menor em sentimentos e que é menor como um ator pode se tornar tremendo quando colocado contra um fundo tremendamente pictórico. O grande valor em usar locações é que potencializa tudo: a história, a ação e a atuação. Eu nunca vou mostrar um pedaço de cenário, um desfiladeiro, um abismo, sem um ator ali.
— Anthony Mann para Sight & Sound

E, com isso, há uma clareza em tudo que Mann filma: se um contraplano mostra o rosto iluminado do interesse amoroso de Stewart, e seu plano é marcado pela sombra em seu rosto, Mann não faz alarde em cima disso. Seu cinema, e em especial este filme, não é um de mascarar ou corromper a realidade. Pelo contrário, as figuras dos homens chegam até a desaparecer no mundo, seja sua glória quando caem rolando no chão e observamos impiedosamente, seja quando seus cadáveres se confundem com carga ao serem levados por um cavalo, ou mesmo quando caminham ao horizonte com a mão manchada de sangue. Não há corte que enfatize tais momentos, ou movimentos que os corrompam. O que há é uma integração dos elementos, que fez com que Bazin (1956) o aproximasse de Cézanne e do pós-impressionismo (quando sua câmera gira, ela respira).

E esta clareza se dá não apenas no como se filma, mas nos próprios eventos filmados. Se em The Naked Spur as histórias dos personagens são mencionadas e suas intenções evidentes nas interpretações, neste os dois acontecimentos capitais são mostrados em sua verdade: uma espécie de anti-Rashomon (1950), que Ford então contraporia novamente com O Homem Que Matou Facínora (1962). Em uma cena, vemos o general matar o filho do patriarca. Em outra, o vemos jogar o patriarca de cima do morro. Não há espaço para mistério, os homens são o que são, o que me parece configurar este como um faroeste puro, não corrompido por outros gêneros ou mesmo por indagações modernistas.

Todos os seus protagonistas travam o mesmo combate para salvar outros homens da covardia e do medo; para transformá-los, contra eles, se necessário, em verdadeiros homens. Assim também Anthony Mann, no contexto tradicional do western, renova o elogio da vontade e do esforço que fez a grandeza do antigo cinema americano; ambos são dignos descendentes de Hawks, sem herdar sua serenidade: a amargura e o desencanto modernos dissolvem o cimento clássico.
— JACQUES RIVETTE (1955)

Discorro, porém, sobre uma possível leitura que joga o filme de Mann na direção do simbolismo. A primeira vez no filme que a figura de James Stewart se ergue acima dos outros (anteriormente, sua altura é aludida em uma fala) é quando se coloca entre o general e a porta do patriarca. O que me lembra uma pintura de Velazques, tanto na coloração, como na observação de estarmos em um ângulo onde tudo pode ser visto (inclusive, mais cedo no escritório do patriarca, Stewart se coloca lado a lado com um espelho que o mostra de perfil), pois mesmo que o general esconda ter sido o feitor de todos os crimes (a venda de armas para os Índios que matou o irmão de Stewart, o assassinato do filho e o atentado ao dono), para nós tudo já foi revelado. O contorno é curioso: frente à clareza, há também a releitura: o sonho profético do patriarca (em uma cena, dizem que ele fica contemplando o corpo do filho morto, homem que vê e não vê) sendo uma reedição da traição de Pedro a Jesus.

O que não deixa de ser mais um desdobramento natural de um diretor tão enraizado no mundo que filma.

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